22/01/2017

Padre Lázaro fala sobre retorno a Artur Nogueira

Pároco relembra trajetória e desabafa: “padres negros ainda são vítimas de preconceito”

Alex Bússulo / Alysson Huf

A partir de fevereiro, a paróquia de Santa Rita de Cássia terá um novo padre: Lázaro Gabriel Lourenço, de 53 anos. Mas, na verdade, o sucessor do padre José Antônio (que será transferido para Pirassununga) não é novo na cidade. Ele já foi pároco em Artur Nogueira entre os anos de 1993 e 1999, quando o município era composto por apenas uma paróquia. Agora, 18 anos depois, Lázaro volta para a cidade ‘Berço da Amizade’.

Conhecido pela alegria e pelo estilo afro ao celebrar as missas, Lázaro é presidente do Instituto Mariama, uma associação de bispos e padres negros do Brasil. Em entrevista ao Portal Nogueirense, o pároco falou sobre o sentimento de voltar a Artur Nogueira, as boas lembranças que tem da cidade e como decidiu entrar para o seminário. Ele também comentou alguns dos casos em que sofreu racismo e a forma como lida com o preconceito no dia a dia.

Confira a entrevista completa:

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Como reagiu quando ficou sabendo que assumiria a paróquia de Santa Rita de Cássia? Reagi com naturalidade. Para mim, desde que eu me ordenei, me coloquei à disposição da Igreja. Eu disse para o padre que me ordenou que eu havia me casado com meu ministério. Me casei com meu ministério, não com a paróquia tal. Ou seja, para mim, isso é parte natural do nosso trabalho. Apesar de já ter trabalhado aqui em Artur Nogueira, vir para Santa Rita vai ser uma nova experiência. O padre Lázaro que vem em 2017 é bem diferente daquele que veio em 1993. São 24 anos de diferença. A minha posse aqui em 1993 foi no dia 9 de março, vou chegar agora aqui em 11 de fevereiro de 2017. Então é uma distância muito grande. A comunidade também já é outra. Andei pelos bairros hoje, e muita coisa mudou, tem muita coisa diferente.

O senhor foi padre em Artur Nogueira de 1993 até quando? Até 1999. Fiquei seis anos aqui. Na época, a cidade era uma paróquia só, hoje são duas.

Quais recordações o senhor tem daquela época em Artur Nogueira? Faz 18 anos que saí daqui. Tenho boas recordações de Artur Nogueira. Eu até aceitei retornar por causa disso. Eu falei para algumas pessoas que eu já fui feliz aqui em Artur Nogueira, e muito feliz. Fui muito bem acolhido. Eu estava na minha juventude. Vim para cá com 29 anos, tinha menos de três anos de padre. Estava no auge da minha força física. Nós tínhamos aqui 16 comunidades, incluindo a zona rural. Fiz muitas amizades e andava bastante a pé, de bicicleta, o que facilitava o contato com as pessoas. Fiquei mais de três anos andando a pé ou de bicicleta, pois não tinha carro. E essa proximidade é muito boa. Quando voltar, a primeira coisa que quero fazer é comprar uma bicicleta.


“Fui muito bem acolhido em Artur Nogueira”


E você ficou triste quando teve que sair daqui? Olha, foi tranquilo para mim. Nós estávamos trocando entre três padres. Éramos muito amigos e nos damos bem até hoje. Um viria de Cosmópolis para cá, o outro iria de Leme pra Cosmópolis, e eu iria daqui pra Leme. Fui para a igreja São Manuel, de Leme. Daí eu fui para lá achando que poderia descansar um pouco mais. Mas, quando cheguei lá, as comunidades eram maiores. Tinha 12 comunidades, mais hospital para atender, cadeia, capela de velório com missas semanais, e fiquei lá quase 12 anos. Então, a minha transferência para lá foi bem tranquila, pois foi previamente acordada. De Leme fui para Americana, onde estou até hoje. Isso faz seis anos.

O que mudou do padre Lázaro de 1999, quando saiu de Artur Nogueira, para o padre Lázaro de 2017, que está voltando? Vou te contar uma fala que tive na Nossa Senhora das Dores há uns tempos atrás. Vim rezar aqui no ano passado e brinquei com o povo, dizendo que se eu tivesse vindo pra Artur Nogueira agora, com 50 anos, minha colaboração teria sido maior para a comunidade. Mas, ao mesmo tempo, eu disse que se isso tivesse acontecido, eu não seria hoje o padre que eu sou. Então o padre Lázaro de hoje é mais maduro, estou com 53 anos, e tenho no meu currículo duas experiências diferentes da que eu tive aqui.

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Seu jeito de celebrar mudou? Acho o meu jeito de celebrar não mudou. Algumas características a gente mantêm, mas te respondo isso com a fala de um paroquiano. Outro dia, fui em Ipuã/SP batizar um sobrinho-neto meu, e um casal da paróquia foi comigo. Eles disseram assim: ‘Padre, o senhor rezou ontem em Ipuã e, hoje de manhã, aqui, a missa que você rezou foi completamente diferente. Como que o padre reza missa diferente?’. E eu respondi: ‘o povo é diferente, então eu não tenho que mudar o povo, o padre que deve se adequar ao seu novo povo’. Quando a gente se ordena, a gente se configura a Cristo. Todo mundo hoje, por causa do computador, entende essa linguagem de configuração. Então o padre se configura a Cristo. E cada vez que mudamos de paróquia, precisamos ir nas configurações e fazer atualizações.


“O padre que deve se adequar ao povo”


O seu estilo de celebrar chama muito a atenção. O senhor usa um chapéu diferenciado… Equeté! Equeté, é o nome do chapéu. Traduzindo, humildemente, significa ‘coroa do sábio’.

A roupa que o senhor usava também é, em alguns casos, muito colorida. De onde vem esse estilo? É o estilo afro. Muitos padres do Brasil, não só negros, usam esse estilo. Sempre gostei do colorido. Depois que me tornei padre, comecei a participar de uma instituição, da qual hoje sou presidente, que é uma associação de bispos e padres negros do Brasil. Se chama Instituto Mariama, em referência à Maria, que ama, e também às amas de leite. Ela existe desde 1989, com sede em São Paulo.

Qual o objetivo dessa associação? Nos encontramos todos os anos para refletir sobre algum tema da atualidade e relacionado à comunidade negra. O objetivo é fortalecer o ministério, pois, por incrível que pareça, ainda hoje tem gente que estranha ao encontrar um padre negro. Ainda somos vítimas de preconceito.

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O senhor já sofreu preconceito? Ah, já. Já passei por isso aqui em Artur Nogueira, em Leme, em Americana, e onde quer que seja. Mas eu não fico triste. Cada vez que isso acontece eu faço uma catequese com a pessoa. Aqui em Artur Nogueira, logo que eu cheguei, teve um casamento onde uma pessoa falou no meio da assembleia: ‘Mas com tanto padre, tinha que ser um preto?’. Eu tenho uma audição muito boa e ouvi isso no meio da cerimônia. Depois do casamento, antes de as pessoas saírem, pedi para desligarem as câmeras e fiz uma catequese, não só com a pessoa, mas com todos os convidados. Expliquei que racismo é crime inafiançável, que aquela era a primeira vez e que eu ia deixar passar, mas que, se alguém tivesse qualquer atitude de racismo ou discriminação comigo ou qualquer dos meus irmãos e irmãs negras, eu processaria. Isso aconteceu nos meus primeiros meses aqui. Também acontecia de eu dar muitas palestras fora e, como eu não tinha carros, amigos costumavam a me dar caronas. E era comum a pessoa que ia nos acolher naquele evento acolher o meu amigo como padre e me apresentar como acompanhante do padre. E meu amigo dizia que não, que o padre era eu. E quando eu chegava dirigindo o carro, a pessoa acolhia o amigo branco e dizia que eu era o motorista do padre. Então quando eu dirigia, eu era o motorista do padre. Quando eu estava do lado do carona, estava acompanhando o padre. Daí a pessoa depois me dizia: ‘Ah, é que eu não sabia qual dos dois era o padre…’. E eu sempre perguntava: ‘E você concluiu a partir do que que o padre é o branco senão no seu preconceito?’. Se chegam dois brancos, a pessoa geralmente pergunta qual dos dois é o padre. Se chega um branco e um negro, a pessoa já conclui que o branco é o padre. Então, na cabeça de muita gente ainda não se consegue aceitar que o negro pode ser padre, médico, advogado, pode ser até juiz do Supremo Tribunal Federal, né? E presidente dos Estados Unidos! Mas tem gente que não consegue enxergar isso. Muitas vezes eu já botei uma roupa toda branca e acontecer de paroquiano me dizer, na brincadeira: ‘Ô, padre, tá trabalhando de açougueiro ou virou pai de santo?’. Por que ninguém nunca me perguntou: ‘Ô, padre, agora você é médico?’. Porque a pessoa vê o branco de roupa branca e já acha que é médico ou enfermeiro; agora, se for um negro, ou é açougueiro ou é pai de santo.

E na associação vocês discutem isso, certo? Sim, discutimos as políticas afirmativas, na tentativa de colaborar para mudar esse cenário.

Na sua infância houve algum episódio que te deixou triste? Houve vezes em que fui discriminado. Eu era atleta, competia desde os 9 anos de idade. Fazia corrida, salto. E lembro que eu tinha uns 12 anos e aconteceriam uns jogos na região em que eu morava. Eu tive paralisia reumática naquele tempo e fiquei oito meses parado, sem treinar. Daí, quando voltei a treinar, em dois meses eu estava já no mesmo nível dos demais. Quando houve a seletiva para ver quem iria para os jogos, eu venci no salto em altura, no salto em extensão e na corrida de 100 e 200m. Mas não fui selecionado para os jogos. O professor que avaliava a seletiva deu a seguinte justificativa: ‘Eu vou levar os outros dois porque o Lázaro está há muito tempo parado e está treinando só dois meses.’ Isso me entristeceu muito. Lembro que o professor que me treinava desde os nove anos queria briga, queria brigar com o cara. Ele disse para o cara: ‘Você é muito burro. Se está treinando seus pupilos o ano inteiro, e o Lázaro, que teve paralisia, com apenas dois meses de treino chega na seletiva e supera seus pupilos, ele vai chegar nos jogos voando’. Foi discriminação dele, não só por ser negro, mas por ser pobre também.


“A pessoa vê o branco de roupa branca e já acha que é médico ou enfermeiro; agora, se for um negro, ou é açougueiro ou é pai de santo”


Seu estilo já causou espanto em algumas pessoas? Já, inclusive em alguns padres. Teve padre que virou para mim e disse: ‘nossa, sua roupa está parecendo pano de colchão’. Então, tem padre que também tem esse tipo de preconceito. Daí quando eu respondo o comentário, a pessoa afirma que é brincadeira. ‘Brincadeira de muito mau gosto’, eu retruco. Acho que em qualquer situação a gente tem que seguir a fala de santo Agostinho: ‘nas coisas comuns, vivemos na união. Nas coisas divergentes, respeito. E em qualquer situação, amor’. Então, acho que eu posso não gostar do seu estilo, mas tenho que respeitar.

O que espera da paróquia Santa Rita de Cássia quando voltar? Não estou criando muitas expectativas com isso. Espero ser acolhido pela comunidade, com abertura. Espero que as pessoas tenham a paciência para nos conhecermos novamente, aos poucos. A gente tem que ir se conhecendo. Muita gente da paróquia eu conheço, mas tem muita gente nova. Então vai ser uma nova experiência.

Quais suas expectativas para a primeira missa de seu retorno? Espero uma celebração alegre, muito bonita, aconchegante.

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E o que os fiéis podem esperar do padre Lázaro? Um homem dos bons para trabalhar, mesmo que o tempo me tenha tirado um pouco da mobilidade.

O que aconteceu com o senhor? Eu tenho artrose no fêmur. Tenho artrose coxofemoral na perna direita. Eu tenho artrite, que é genético, e a artrite acabou se transformando em artrose no fêmur. Alguns acham que é por causa do futebol, mas o médico diz que pode não ter nada a ver. Eu já joguei muito futebol, mas hoje a artrose dificulta minha movimentação. Por isso, eu uso uma bengala para andar. Faço tratamento com medicamentos para a artrose. Mas a minha cabeça é a mesma. A inteligência a gente não perde.

Isso te prejudica? Faço minhas atividades normalmente. Quanto à dor, a gente releva. A gente aprende a conviver com ela, nos acostumamos sentir dor 24 horas. Meu médico diz que eu assimilei a dor. Hoje eu não tenho as dores que eu tinha dez anos atrás.

Há quanto tempo o senhor usa a bengala? Já faz uns dez anos. Antigamente eu usava bem pouco, para grandes caminhadas. E não usava na igreja. Hoje eu também não uso na igreja, mas, quando saio à rua, uso, pois vai melhorar a qualidade da caminhada.


“Paguei minha escola colhendo laranja, com muito orgulho e muita honra”


Como você descobriu sua vocação? (Risos) Essa é uma história que eu já contei várias vezes. Às vezes não é a gente que descobre a nossa vocação; os outros que descobrem para a gente. Eu nasci em Terra Rica, no Paraná, numa fazenda de um distrito chamado Ademar de Barros, em 1963. Moramos nessa fazenda, depois em outra e fomos parar em Diamante do Norte. Meus pais eram meeiros. Eles arrendavam terras e trabalhavam nelas na época do café. Meus pais tiveram oito filhos, mas perderam dois. Vim do Paraná para a região de Artur Nogueira com 13 anos, em 1977. Fomos morar em Limeira. Trabalhei nas roças de toda a região até 1982. Eu era boia-fria, adolescente, com 13 anos. Sempre digo para as pessoas que paguei escola particular trabalhando no laranjal. Para recuperar o tempo, fiz supletivo em escola particular. Paguei minha escola colhendo laranja, com muito orgulho e muita honra. Lembro de quando Artur Nogueira ia só até o Bar do Dinho, na XV de Novembro. Ela acabava ali. E naquela época eu já conhecia Artur Nogueira. Então conheci três Artur Nogueira, a do começo dos anos 1980, a de 1993 a 1999 e a de agora. Então, eu estava em Limeira, trabalhando numa comunidade, e uma amiga que me descobriu. Uma amiga chamada Elisa. Estávamos descendo para a missa, após a catequese, e ela me disse: ‘você já pensou em ser padre?’. E eu disse que não. E ela disse: ‘acho que você deveria pensar’. Ela não disse que eu tinha descoberto minha vocação, mas que eu tinha todo o jeito para ser padre. Eu tinha 17 anos na época. Daí pensei seriamente no assunto, conversei com uma amiga freira, com o padre e fiz um encontro vocacional. Em 1984, entrei para o seminário.

Como a família reagiu? Numa boa. Minha família sempre me apoiou.

E como foi a sua juventude antes do seminário? Minha vida é muito precoce. Comecei a trabalhar com sete anos. Com essa idade eu já engraxa sapatos, limpava lotes, carpia e, aos 12 anos, eu tive minha primeira namorada. Então, tive uma adolescência normal. Vivi minhas fases da vida. Aquela época era o auge das discotecas e sempre gostei muito de dançar. Hoje eu só não danço mais por causa da artrose. Então, eu trabalhava na roça durante a semana, sábado à noite dançava na discoteca e no domingo jogava futebol. Quando entrei no seminário, tive que direcionar a vida para o estudo. Fiz sete anos de faculdade, ordenei padre em 1990, e assumi a igreja de Menino Jesus, em Limeira. De lá vim para Artur. Nesses três primeiros anos em Limeira eu continuei estudando. Queria licenciatura. Então fiz o bacharel e depois a licenciatura. Fui colega do padre Éder, de quem vocês devem se lembrar, e dei aulas em Limeira por alguns anos.

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Se não fosse padre, o que o senhor seria? Jogador de futebol? Não sei se seria jogador de futebol, porque fiz peneira na adolescência e passei, mas trabalhava na roça. Minha mãe era viúva – meu pai morreu quando eu tinha 14 anos, de derrame cerebral. Quando fiz peneira, fui aprovado, mas teria que treinar todos os dias. Só que daí eu não poderia trabalhar, e isso não tinha como. Mas eu também gosto muito de lecionar. Se eu não fosse padre, seria professor. Só não sei de quê.


“Posso ter qualquer problema, mas, se opto pela alegria, isso não tira minha felicidade”


O senhor é devoto a qual santo? Tenho dois: São Francisco de Assis e São Paulo. De Paulo, eu procuro aprender a fortaleza, a seriedade. Ele procurava fazer sempre muito bem as coisas, se dedicar ao máximo. Então a teimosia de Paulo e a rigidez dele, eu procuro aprender. E Francisco de Assis me encanta pela alegria. Era um jovem boêmio que se converte e traz essa mesma alegria para o evangelho. Ele chamava a morte de irmã. E eu procuro no meu dia-a-dia assimilar essa alegria. A minha alegria e meu modo de viver são uma opção. Eu opto pela felicidade. Então, eu posso ter qualquer problema, mas, se opto pela alegria, isso não tira minha felicidade.

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