28/08/2016

Músico de Artur Nogueira conta como superou deficiência auditiva para se destacar nacionalmente

Kzam Gama descreve trajetória que começou no Pará, passou por grandes ícones da Bossa Nova no Rio de Janeiro até chegar em Artur Nogueira.

Rui do Amaral

Fotos: Diego Faria

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O clima estava especialmente agradável. Caminhar da redação até o prédio histórico da Corporação Musical 24 de Junho não levaria muito tempo, mas seria o suficiente para curtir o friozinho acompanhado do Sol. Ao chegar no prédio, na rua 10 de Abril, Kzam Gama já estava à minha espera. Com um sorriso no rosto, o músico de 54 anos, natural de Belém do Pará, me convida a entrar. Logo percebe que não há onde sentar, e juntos buscamos o piano de cauda que serviria como mesa de conversa.

João Batista Kzam Gama, conhecido no meio profissional por Juista Kzam, nasceu diferente devido a uma hipoacusia neurossensorial bilateral, doença que afeta a audição e, no caso do músico, mais profundamente no ouvido esquerdo. A mistura em sua genética talvez explique a facilidade para aprender tantos instrumentos diferentes. Nas veias de Kzam corre sangue árabe, sírio-libanês, português e tupi. O início na vida musical veio aos cinco anos. “Meu pai era militar e veio de uma comunidade no interior do Pará, onde era comum as pessoas usarem a música para sua expressão cultural, com o ritmo carimbó, que é natural de lá. Ele tocava instrumentos de sobro feitos de mamona, cantava e batucava”, lembra. A mãe também não negava a veia musical, formada como pianista pelo Instituto Carlos Gomes de Belém. Com um berço destes, é natural que Kzam tenha tido contato com a música desde muito novo.

O músico conta que, por ter o já mencionado problema de audição, seus pais o colocaram em um instituto quando ele completou cinco anos, temendo que o filho portasse alguma deficiência intelectual. “Eu tinha dificuldade em me comunicar e me expressar. Só mais tarde um médico percebeu meu problema e me encaminhou a outro instituto, onde aprendi a fazer leitura labial e facial”.

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Neste período, Kzam aproveitou para iniciar sua vida musical, já que o aperfeiçoamento nos instrumentos o fazia evoluir na comunicação. Aos cinco anos começou a tocar violão, sem professor. Foi sempre autodidata.

Com dez anos eu já tocava violão, cavaquinho e flauta doce. A partir dos dez anos, começou a me interessar em estudar teoria musical. Saía perguntando para alguns músicos que livros eu deveria comprar para aprender. “O resultado do meu esforço veio já aos 14 anos, quando tirei minha carteira de músico na Ordem dos Músicos do Estado do Pará. Até hoje ninguém tirou o documento com menos idade do que eu”.

Depois disso, migrou para a Música Popular Brasileira (MPB). O irmão mais velho tinha um professor de música e começou a tocar profissionalmente nas noites de Belém. Isso começou a abrir as oportunidades. “Aos 14 aos, comecei a tocar contrabaixo, guitarra, bateria, tudo isso em shows de jazz. Por volta dos 16 iniciei no piano. Com 19, no serviço militar, comecei a tocar fagote, trompa, saxofone e trompete, sempre sozinho. Eu focava mesmo na MPB e no frevo”.

O talento de Kzam transcende a esfera musical. Possui o diploma de terceiro sargento e fez um curso profissionalizante de auxiliar de enfermagem. Trabalhou como enfermeiro no Hospital Adventista de Belém. Por volta dos 15 anos, conheceu o pessoal de uma banda chamada ‘Casa das Máquinas’. “Era uma banda de São Paulo, e um dia nós abrimos um show para eles quando foram tocar em Belém. Toquei com muitos músicos da MPB quando eles iam se apresentar em Belém, por ser mais barato eles viajarem sem suas bandas”. Kzam ao lado do pianista Álvaro Ribeiro, que passou um ano nos Estados Unidos na época do surgimento de vários ícones do jazz, como Ella Fitzgerald. “Ele foi o mentor meu e de meu irmão no piano”.

Já tocando contrabaixo em um trio de jazz, Kzam também cantava. “Com este pianista toquei aproximadamente 18 anos, de 1978 a 1986. Os ícones da MPB iam se apresentar lá e nosso trio os acompanhavam”.

O trio tocava no Equatorial Palace Hotel, na época o maior hotel de Belém. Em 1980, Elis Regina foi apresentar o show ‘Essa Mulher’ na capital paraense. Ela se apresentaria no sábado e, por este motivo, o bar em que tocavam no hotel, que sempre tinha casa cheia, esvaziou-se. “Claro, todos queriam assistir o show da Elis”. Aconteceu que o show não poderia ocorrer porque dois músicos dela perderam o voo do Rio de Janeiro. E onde a cantora estava hospedada? No mesmo hotel onde Kzam se apresentava todo final de semana. O show foi transferido para domingo. “Foi assim que a conheci. Trocamos uma ideia e no domingo tive o prazer de tocar com ela em sua apresentação em Belém”.

Foi na cidade que Kzam desenvolveu uma intensa vida musical. “Trabalhei como músico contratado no próprio Hospital Adventista de Belém, onde desenvolvi o trabalho com dois quartetos e consegui coloca-los em um programa da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e gravaram diversos discos”.

Foi em 1982 que Kzam veio a São Paulo, e ficou aqui até 1986. “Fui contrabaixista de um outro grupo musical adventista bastante conhecido, que é o Prisma, além de outros grupos em que pude ser arranjador. Foi um período muito bom”. Casou-se em meados dos anos 80 e, em 1986, voltou ao Pará, já que a esposa havia engravidado e queriam criar os filhos por lá. Neste período desenvolveu vários trabalhos, abrindo apresentações de compositores paraenses e de outros que lá se apresentavam. Fundou, no Instituto Carlos Gomes, a Amazônia Jazz Band, banda que existe até hoje. “Desenvolvi arranjos para dois grupos, um da Assembleia de Deus e um da Igreja Batista. Além disso continuei o trabalho com outros compositores e cantores, também escrevendo arranjos”.

Na época, tinha dois trios. Um chamava-se Trio Pororoca e, o outro, T’rio Amazonas. “O Pororoca acompanhava cantores, e o Amazonas desempenhava um trabalho de piano, contrabaixo e bateria. Além disso eu tinha o Septuaginta, que posteriormente passou a se chamar Contactos Imediatos”. Nestas bandas, o músico já desenvolvia o trabalho de pianista e arranjador.

O talento chegou a ser reconhecido com a participação de diversos festivais de Música Popular Brasileira. “Ganhei alguns festivais de arranjo, como o Festival dos Servidores Públicos de Belém do Pará, de festivais de MPB no Espírito Santo, Minas Gerais, Acre, Amapá, Amazonas, Tocantins e em países como Guiana Inglesa e Francesa”. Após 20 anos do retorno a Belém, decidiu voltar a São Paulo, em 2006. “Eu fiquei em Belém durante este tempo para poder criar meu casal de filhos. Voltei para cá porque, a essa altura, meus filhos já estavam formados no Ensino Médio e era meu plano cursar uma Faculdade de Música”, explica. “Já queria ter feito antes de casar, mas acabei que só fui me formar mais de 20 anos depois”.

Cursou Licenciatura em Música no Unasp e se formou em 2011. “Ainda reuni quatro diplomas de mérito acadêmico ao longo do curso. Lá eu desenvolvi alguns trabalhos e também foi lá que conheci o maestro Ricardo Michelino”. No começo de 2010, passou a se envolver com a Corporação Musical 24 de Junho e com a Orquestra Sinfônica do Unasp. “O Michelino é um grande amigo meu e tenho orgulho de ter desenvolvido muitos trabalhos com ele”. Atualmente, Kzam não toca mais na corporação, já que está aposentado por invalidez devido a um problema na coluna.

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O multi-instrumentista sempre fui muito engajado em ajudar pessoas que apresentassem alguma deficiência ou dificuldade como eu tenho. Tanto aqui em Artur Nogueira como em Belém do Pará, deu aulas gratuitas de diversos instrumentos para crianças, além de dar aulas de musicalização infantil. “Sempre foi muito bom desempenhar esses trabalhos com cunho mais social”. Também trabalhei com um coral de crianças e deu aulas de violão gratuitas na ADRA de Artur Nogueira.

Kzam faz uma análise da participação da música no município Nogueirense. “Aqui em Artur Nogueira existem muitos subsídios para músicos, principalmente por causa da Corporação 24 de Junho. Não é novidade que a entidade começou a se desenvolver mais rápido depois da vinda do maestro Michelino e de sua esposa. Eles fizeram uma coisa muito importante que foi resgatar a história desta instituição, afinal a corporação é mais antiga do que o próprio município”, avalia. “Apesar de tudo, muita coisa ainda tem para ser feita, mas a corporação já provou mais de uma vez sua excelência e qualidade. Gostaria de ver os líderes de nossa cidade ainda mais engajados, dando cada vez mais atenção aos profissionais que nela trabalham”.

Kzam explica que a música traz uma interatividade que não pode ser encontrada em nenhuma outra disciplina. Para ele, música é fator social. “As pessoas mudam de vida com a música, ganham motivação que muitas vezes não conseguem encontrar em nenhum outro lugar”.

Ao terminar a conversa, pergunto se Kzam quer ajuda para guardar o piano. “Não precisa. Ainda não terminei por aqui”, sorriu.

Confira uma das composições de  Juista Kzam 

A música é de parceria do compositor com o irmão, Kzam Gama e a letra foi escrita pelo irmão mais novo, João Claudio Kzam. Foi gravada pela primeira vez em Paris. A segunda versão foi gravada nos Estados Unidos e, mais tarde, uma nova versão foi feita em português, também em Paris. A cantora baiana Mônica Passos e Pedrinho Cavalléro também já gravaram suas versões da canção. Karol Guaitolini, uma cantora mineira, foi a última a cantar a composição.


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