24/08/2014

MEMÓRIA: O médico dos médicos

Conheça a história de Daniel Marun, o primeiro clínico de Artur Nogueira

Por Isadora Stentzler

Já tinha dias que dona Maria Genaro estava mal. Mesmo assim seguiu até o último suspiro confiando na medicina daquele homem. “Procure outro médico, Maria”, era um suplício vão. Porque a mulher acamada tinha no clínico paulista a segurança do bom cuidado e a esperança de dias melhores.

– Os outros não me farão mais do que o senhor. E um filho não me tratará com mais carinho do que o senhor me trata. Si eu for com outros médicos, quem é que me ajudará a subir os degraus da escada? Quem é que me ajudará a subir os degraus da charrete?

E a olhos úmidos, apelava:

– Só si o senhor estiver enjoado de me tratar…

E não. Ele não estava enjoado de a tratar. Na verdade nunca sentira tanto afeto por uma paciente como por aquela velhinha. Mesmo nas simples condições que a década de 30 lhe proporcionava, não podia ele, sob juramento médico, abandonar uma acamada por não se julgar o mais apto para tanto.

Porém, Maria chegou ao fim dos dias. Pouco antes de fechar os olhos para os pores do sol, disse ao clínico:

– Adeus, doutor, e obrigada, muito obrigada por tudo. Agora é mesmo o fim e eu não vou amolar mais o senhor. Vou descansar e fazer os outros descansarem também.

Mas tudo aconteceu antes. Antes de Artur Nogueira ter um Pronto-socorro. Antes de Artur Nogueira conhecer atestados. Antes de Artur Nogueira confeccionar jalecos. Antes de Artur Nogueira ter um postinho de saúde. Antes de Artur Nogueira oferecer convênios médicos. Antes de Artur Nogueira ter farmácia. Antes de Artur Nogueira fornecer remédios. Antes de Artur Nogueira preencher prontuários. Antes mesmo de Artur Nogueira ser Artur Nogueira. Um tempo na década de 30 em que antes de tudo, Artur Nogueira já tinha um médico, o médico dos médicos da cidade, o seu Daniel Marun.

As memórias e vida deste clínico foram registradas em seus diários e copiladas em 2006 pelos filhos Daniel Marun Filho e Sérgio Pelegrini Marun que transformaram as histórias do médico em uma série de livros azuis. Em um deles, “Artur Nogueira”, há os comentários do generalista sobre os trabalhos na cidade que, à época, nem conhecia luz.

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Marun veio à Artur entre as décadas de 30 e 40. Formado em medicina no Rio de Janeiro, até então ele trabalhava em Campinas como chefe de enfermaria da Clínica Médica do Professor Dr. Miguel Couto. Lugar em que ficou por dois anos.

Formatura de Daniel Marun

De lá veio para Artur Nogueira, cidade então chamada de Distrito da Paz, território da Comarca de Mogi Mirim, onde ficou 15 anos. Aqui teve os dois filhos, criou uma cooperativa médica e foi subprefeito do município.

Yvone e os filhos Sérgio e Daniel

Politicamente engajado, lutava em prol das minorias. Em seu diário, lê-se uma carta que ele escreveu a respeito do processo eleitoral e do tipo de candidato que deveria ocupar a prefeitura da cidade: “É preciso, sim, que ele [prefeito] seja do povo, doutor ou não doutor, mas do povo que sofre, geme e sabe quanto lhe custa o pão de cada dia. Chega de elegermos candidatos decorativos, que se candidatam para ter mais um título com que se envaidecerem e que vão para as assembleias, como parasitas, com um único fito de tirar uma soneca e tomar um cafezinho. Chega, meus amigos, e elejamos gente do povo, trabalhadores de verdade e não capitalistas fantasiados de trabalhadores.”

É por isso que se preocupava com senhoras simples como a dona Maria Genaro. Mas não só ela.

Na Artur Nogueira inasfaltada, demasiada era a preocupação do especialista em chegar às ocorrências com tempo hábil de prestar os primeiros socorros. E por vezes a charrete atolada lhe aborreceu. Coisa que nunca lhe parou.

“Doutor, o senhor não arrepare de eu escrever para o senhor, mas a mamãe pediu para escrever porque ela morreu falando que o senhor foi muito bom pra ela”, dizia uma carta que Marun recebeu em 9 de junho de 1936, de uma filha que acabara de perder a mãe. “Deus estará sempre ao seu lado pelo bom coração que o senhor tem. Deus te pagará.”

Romance

Fora da medicina, era Marun um poeta. Um romântico. Um apaixonado pela esposa Yvone, mas que na época do namoro, por conta do estudo e trabalho, por vezes ficavam longe.

Yvone - esposa de Daniel Marun

A ela direcionou inúmeros poemas e cartas com letras banhadas a paixão. Crônicas de amor à mulher que escolhera para a vida. Crônicas de despedida quando achava que a distância era demasiada para manter a relação. Crônicas de saudade.

Em uma carta trocada, Marun chegou a pedir o término do romance. Não por falta de amor, mas pela distância. No final do texto, pontuou à Yvone: “Não me odeies e não me queiras mal por isso; quando tiveres ímpeto de me odiar, lembra-te que eu te amo doidamente e que nunca sairás do meu coração […] Serás sempre a minha meiga e linda gatinha, serás o amor mais puro que já tive na vida.”

Conflito duradouro que fez Yvone lhe responder em caneta e papel: “Que me importa que você me esqueceu ou já me tenha esquecido? Se você viverá sempre em mim, dentro das minhas pupilas, amarrado dentro da minha alma, dentro da minha boca vermelha pelos próprios beijos que você me deu? Se você é parte dominante da minha vida, se você é a própria sombra que projecta o meu corpo e me acompanha sempre?”

Com tal romance, intenso e inseparável ainda que nas distâncias, Yvone casou-se com Marun. Desse relacionamento nasceram dois filhos, os compiladores da memória do pai.

Mas em 2 de dezembro de 1975, cessaram-se as crônicas de Marun. Parou ele com a medicina. Largou ele da política. É que Marun morreu. Porém deixou em Artur Nogueira os rastros do primeiro médico da cidade. O apaixonado médico dos médicos locais.

Daniel e Yvone Marun


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