12/04/2015

Lázaro Adorno – Herói da Mogiana

O homem se prostrou em frente a um trem e salvou centenas de vidas. O ano era 1957. Chovia muito e parte dos trilhos ficou comprometida após uma tromba d’água.

Por Geso Franco de Oliveira

Enquanto os paulistas se entregavam às comemorações do 403º aniversário de fundação da cidade de São Paulo e inauguravam o Ginásio do Ibirapuera com vitória da seleção bandeirante de basquetebol por 81×77 contra a seleção Argentina, Lázaro Adorno lutava contra o espectro da morte que ameaçava 360 pessoas.

Chovia muito, era tarde de sexta feira, 25 de janeiro de 1957 e um violento temporal atingia a região de Martim Francisco, pequeno bairro de Mogi Mirim.

Entre a estação de Tujucué e Martin Francisco havia um aterro por onde passavam os trilhos da Estrada de Ferro Mogiana. Com a forte chuva que caia desde a manhã na região, formou se uma tromba d`agua e a enxurrada que arrastava tudo a sua frente não poupou o aterro dos trilhos da Mogiana.

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Lázaro Adorno trabalhava no engenho de cana da fazenda Santa Bárbara de propriedade do Sr. Laudelino Pila e residia como caseiro no sítio Pasto Velho, vizinho ao rio e aos trilhos da Mogiana, lugar conhecido como curva grande, morava ali com sua esposa Sebastiana e três filhos solteiros.

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A chuva caia sem cessar por várias horas, Lázaro e os filhos mudavam os colchões e mantimentos para um paiol, pois a enchente estava próxima à sua casa e ameaçava inundá-la. Lázaro pediu para seu filho José de 16 anos e sua filha Divina de 14 verificarem porque a água não escoava e se o ladrão (bueiro) estivesse entupido que tentassem desentupir. Ao chegarem próximo ao aterro, ouviram um grande estrondo, era a tromba d`água que levara o aterro, deixando os trilhos e dormentes pendurados no ar.

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As crianças chorando contaram ao pai o acontecido. Ao ver os trilhos pendurados, Lázaro lembrou do trem que passaria por volta de 15h30 e nele estaria a sua esposa Sebastiana que viria de Mogi Mirim, não teve dúvidas e tomou rumo pela linha ao encontro do trem. Ficou muito nervoso quando ouviu o apito do trem pensando no desastre que ia acontecer, começou a dar sinal ao maquinista para que parasse, o trem não parou rapidamente por existirem curvas e um declive acentuado no local. Porém, depois de um bom tempo e há poucos metros de Lazaro, o maquinista o atendeu, e parando a composição gritou: “sai da linha, seu loco, o trem te mata”, Lázaro respondeu: “aqui você mata um, lá embaixo você mata todos”. A princípio o maquinista não acreditou em Lázaro, desceu do trem e acompanhado do chefe foram ver de perto o abismo formado pela queda do aterro, e só assim puderam avaliar o perigo que haviam corrido, eles e mais 360 pessoas que estavam a bordo em 9 vagões. Pouco adiante, 30 metros de trilho balançavam no ar, na altura de 21 metros.

Muitos passageiros do trem eram veranistas que vinham de Poços de Caldas com destino a Campinas e São Paulo, outros de Santo Antônio de Posse, Jaguariúna. Os moradores de Martim Francisco desceram e atravessaram pela lama, pois estavam próximos, quanto aos demais, voltaram com o trem até Mogi Mirim onde foi feita a baldeação, alguns ficaram hospedados em hotéis na cidade.

Para surpresa de Lázaro e dos filhos, Sebastiana não estava na composição pois havia perdido o trem.

A notícia do fato ganhou as rádios, jornais e Lázaro virou o herói nacional por evitar um grande acidente e salvar muitas vidas.

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Homenagens:

Alguns dias depois do fato, Major Borges, chefe da casa militar do Catete, faz um telefonema para Adib Chaib, então prefeito de Mogi Mirim, convidando-o, juntamente com Lázaro Adorno, para ir ao Rio de Janeiro, para receber do então presidente Juscelino Kubitschek a condecoração “Ordem Nacional do Mérito”. O Governador de São Paulo Jânio Quadros também os convidou para receber a medalha “Valor Cívico”.

São Paulo

Em 30 janeiro de 1957, a comitiva saiu de Mogi Mirim com destino à capital Bandeirante, formada pelo prefeito Adib Chaib, seu irmão e Deputado Estadual Nagib Chaib e Lázaro Adorno. Hospedaram-se em hotel na Rua da Consolação e na manhã seguinte foram recebidos no Palácio dos Campos Elíseos pelo secretário da Aviação Coronel Faria Lima, que na ocasião representava o executivo estadual, também estavam presentes os diretores das Estradas de Ferro Mogiana e Sorocabana, Chafic Jacob e Uzeda Moreira.

O secretario leu o decreto do governador, concedendo a “Medalha de Valor Cívico”, cunhada em ouro, ao heroico trabalhador. Esclareceu o secretário que Jânio Quadros desejava entregar pessoalmente a medalha, porém por motivos de agenda lhe confiou a entrega. O secretário Faria Lima enalteceu o ato de desassombrada coragem praticada por Lázaro Adorno e colocou em seu peito a medalha. O diretor Sr. Chafic informou que a Mogiana concedeu lhe um prêmio de 20 mil cruzeiros, valor considerado alto para a época. Um diretor da VASP (Viação Aérea de São Paulo) entregou a Lázaro uma passagem para ir até o Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro

Herói e comitiva chegaram no Rio de Janeiro em 1 de fevereiro 1957, porém a cerimonia só aconteceria na segunda-feira, pois o presidente Juscelino estava em Belo Horizonte.

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Segunda Feira, 4 de fevereiro, pouco antes das 17 horas, no salão de visitas do Palácio das Laranjeiras, aguardavam pela cerimônia a primeira dama Sra. Sarah Kubistchek, sua filha Marcia Kubistchek, a professora e mãe do presidente Julia Kubistchek, o major Luís Felipe Borges, o ministro-chefe do Cerimonial Aluísio Napoleão, o deputado Horácio Lafer, fotógrafos, radialistas e jornalistas.

Lázaro foi recebido com uma salva de palmas. A única diferença no traje simples com que chegara ao Rio era a camisa: não vestia a riscadinha e sem gola, mas uma de linho de cor bege, penteado e barbeado com chapéu na mão. Conservava aquele ar de curiosidade e timidez. Lázaro nunca imaginara falar com o presidente e muito menos receber uma medalha, que pela segunda vez era conferida por ato de heroísmo em salvar vidas (quem recebeu a primeira foi o operário Augusto Gonçalves, herói do bondinho do Pão de Açúcar em 1951).

Às 17h horas adentra a sala o presidente Juscelino Kubitschek. A solenidade teve início com a leitura, pelo ministro Aluísio Napoleão, do decreto que conferiu a Lazaro Adorno a medalha “Ordem Nacional do Mérito”, logo depois o presidente abraçou Lázaro e discursou:

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“Honra o Governo da República, neste momento, na pessoa do senhor Lázaro Adorno, aqui presente por convite especial meu, uma admirável figura de homem, herói obscuro que se expôs ao supremo perigo para a salvação de numerosas vidas. Numa hora marcada pela afirmação do egoísmo e em que assistimos todos os dias um pouco em toda parte a demonstrações de ambição desmedida e a uma dolorosa carência de altruísmo, este modesto lavrador ofereceu ao seu pais um grande exemplo. Não o moveu, no seu ato de abnegação, nenhum desejo ou ambição de gloria, de renome. O que há de verdadeiramente dignificante na aventura de nosso homenageado é que ele praticou seu gesto heroico com a naturalidade e a humildade que se cumpre um dever”.

Lázaro ouviu emocionado as palavras do presidente Juscelino Kubistchek que acrescentou:

“Jamais conferi uma distinção com tão grande consciência de que exerço alta justiça, reconheço aqui um autêntico valor humano”.

Abraçou Lázaro novamente e colocou em seu peito a Medalha da Ordem Nacional do Mérito, como também entregou-lhe o diploma e comovido disse:

“Ofereço a você um pedaço de terras na sua zona rural e a educação escolar a dois de seus filhos menores”.

Após o ato, o Presidente manteve longo diálogo com Lázaro e pediu para ele narrar como fez para parar o trem. Lázaro, que ao receber a medalha mal pudera murmurar um “muito obrigado”, embargado pela emoção e com os olhos rasos de agua, sem hesitar, em termos singelos narrou sua história.

“Quando meu filho José falou que o aterro tinha rodado com a enxurrada e os trilhos estavam pendurados, fiquei angustiado, lembrei do trem e subi linha acima para parar o trem. Avisei o maquinista, mas ele não acreditou em mim”.

O presidente, então perguntou:

“E você Lazaro?”

“Eu? Eu disse que ele fosse ver se era verdade ou não, uai.”

(Foi um momento de descontração e todos riram)

O presidente questionou Lázaro sobre sua família. Ele disse ser pai de seis filhos, sendo quatro homens e duas mulheres, e que sua mulher sofria de bronquite crônica. Passava as noites em claro abanando a esposa.

“Além do mais é bom marido”, comentou o presidente.

Quando soube que Lázaro ganhava em média 60 cruzeiros por dia, o presidente lhe perguntou se dava para viver e ele respondeu: “apertado, presidente, muito apertado…”

E depois, abraçando o herói, mais uma vez, Juscelino, falou na pequena gleba de terras que lhe concedera, encerrando assim a audiência com o lavrador herói.

Mais homenagens

Foram feitas várias outras homenagens, em Mogi Mirim e em Campinas na sede da Mogiana. Seus conterrâneos Mogiano e Mogianinho, também o homenagearam gravando a composição “Tromba D`água” que conta a história dos fatos.

“Tromba D´água” – Letra: José dos Santos Moreno
Numa tarde de janeiro triste fato acontecia
Distrito de Martim Francisco, quando a notícia corria
Uma grande tromba d´água só nuvens que se via
O que é mandado por Deus nenhum de nós desvia

O povo pedia pra Deus, também pra Virgem Maria
A chuva continuava, sobre a terra caia
As águas formavam um rio e abaixo ela descia
Desceu na linha Mogiana e fez uma triste armadilha

Tromba d´água fez estrago, tirou o aterro do lugar
Ficaram só os trilhos estendidos onde o trem ia passar
Poucos minutos antes da hora do trem chegar
O senhor Lázaro Adorno o aterro foi olhar

Nisso o trem já vinha vindo ele pegou a imaginar
Deitou na linha do trem e começou a dar sinal
O maquinista parou, todos eles foram olhar
Ficaram todos pasmos vendo onde o trem ia passar

Mais de 300 pessoas que vinham vindo embarcados
Naquele triste lugar iam se desastrar
O senhor Lázaro Adorno livrou do destino marcado
Graças a Deus nada aconteceu e todos foram poupados

Chico Fumaça

Com história semelhante à de Lazaro Adorno, o estúdio de Amâncio Mazaroppi lançou em 1958 o filme “Chico Fumaça”.

No filme, Chico Fumaça é um caipira que adora trens e sonha em ser maquinista. Deve a Deus e ao mundo, mas sempre paga suas dívidas com a vaca de estimação, sempre dando um jeito de pegar a vaca de volta. Certo dia, observando o trem, como costumava fazer, viu um defeito na ferrovia e ao avisar o dono da companhia do problema, e que poderia ocasionar uma tragédia, acaba considerado um herói pelas autoridades. Graças a esse ato de generosidade, Chico vai buscar no Rio de Janeiro um prêmio em dinheiro e começa a tomar contato com um mundo novo feito de luxo, tecnologia e boemia. Um grupo resolve roubá-lo, mas Chico desmascara os bandidos e volta à sua cidade novamente como herói.

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Diante do sucesso do filme, Lázaro Adorno se sentiu ridicularizado e pediu indenização por danos morais aos produtores do filme e ao ator, porém em nada resultou e os réus foram absolvidos.

Quanto às promessas de JK em doar uma gleba de terras e custear os estudos dos filhos menores de Lázaro, ficou na promessa. O então prefeito de Mogi Mirim, Sr. Adib Chaib, que acompanhou Lázaro Adorno ao Rio de Janeiro, propôs à câmara a doação de terreno de aproximadamente 350 metros quadrados localizado na Vila Aurea, porém a proposta foi rejeitada, tempo depois Adib doou a Lázaro um lote em outro local.

Além dos 20 mil cruzeiros a Companhia Mogiana concedeu a Lázaro uma pensão vitalícia. Prometera porém passagens vitalícias a Lázaro e todos os seus, mas acabou não cumprindo a promessa.

Lázaro Ferreira Adorno, nasceu em 21 de dezembro de 1899 na zona rural de Mogi Mirim, casou-se aos 22 anos com Sebastiana Correia Brito, tiveram dezesseis filhos, porém na época do fato tinham seis: Antônio, João, Benedito, Sebastiana, José e Divina. Lázaro era uma pessoa simples e não acalentava maior desejo de proporcionar vida melhor ao seus. A família, embora humilde, era feliz e pouco mudou com as medalhas recebidas. Tempo depois ficou viúvo e foi morar com o filho Antônio. Adoeceu e veio a falecer em 14 de setembro de 1973. Seu corpo está sepultado no cemitério de Mogi Mirim, Após o falecimento foi homenageado com denominação de uma rua na Vila Bianchi em Mogi Mirim.

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Havia ouvido esta história, porém em conversa com o amigo Odinovaldo Bueno de Mogi Mirim, resolvi estudar os fatos e pesquisar mais sobre. Odinovaldo disse-me conhecer Milton Carlos Silveira, um dos passageiros que estava no trem. Depois de idas e vindas a Mogi Mirim descobri também José Ferreira Adorno (74), único filho vivo de Lázaro Adorno, e um dos protagonistas da história.

Em contato com Milton Carlos Silveira, pedi a ele para me contar suas memórias do ocorrido e ele enviou-me o seu relato.

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Relato de um dos passageiros que estava no trem (Milton Carlos Silveira)

“Caro amigo,

 Muito obrigado por interessar-se por este assunto, após nossa conversa, onde lhe contei sobre esta ocorrência que poderia ter envolvido toda minha família num gravíssimo acidente; uma vez que estávamos todos naquele trem que saiu de Guaxupé MG, com destino a São Paulo. Em Mogi Mirim, uma tempestade (tromba d’água) levou toda a terra, numa grande extensão abaixo dos dormentes, deixando os trilhos no ar. O trem estava fadado a precipitar, vagão a vagão, em uma enorme vala; num desastre inigualável.

Seria pouco provável que eu estaria agora contando esta história, que já lhe contei pessoalmente, se não fosse a atitude deste Homem (Sr. Lázaro Adorno) que só recentemente vim a saber o nome, que heroicamente impediu o desastre. Estou repetindo aqui este relato para o Sr.,(Geso), que emergiu em importância, graças a perspicácia do seu amigo e também comunicador Sr. Odinovaldo Bueno. É devido a pessoas de sensibilidade como vocês, que um fato histórico como este não irá se perder no tempo, ficando agora registrado, principalmente para conhecimento dos meus filhos, noras, netos, irmãos, parentes e amigos.

Na época eu, o filho mais velho, tinha dez anos e infelizmente não lembro do ocorrido com riqueza de detalhes, a não ser que dormimos em uma pensão em Mogi Mirim e que no dia seguinte atravessamos a pé, pisando na lama e carregando as malas, para passar pelo trecho interrompido e pegar o trem para voltar para casa.

Destas lembranças, uma imagem ficou registrada em minha memória; uma grande extensão de trilhos e dormentes suspensos, a uns trinta metros acima do local onde a tromba d’água toda terra havia levado.

Hoje, em conversa com minha prima (Irene de Freitas Felix) que na época, ainda uma adolescente, viajava conosco ajudando minha mãe a cuidar de mim, duas irmãs e um irmão, ela lembra que minha irmã mais nova (Sonia), em todas as estações que o trem parava, chorava muito e queria descer. Lembrou ainda que minha mãe, que sempre foi muito religiosa e tinha muita fé, estava muito aflita com a situação, a forte tempestade, e com o comportamento anormal de minha irmã. Com pressentimentos ruins; postou-se em orações, pedindo proteção a Deus. Com certeza suas preces foram ouvidas e Deus colocou seu enviado em nosso caminho: “LÁZARO ADORNO”.”

“Eu, minha prima Irene e todos nossos descendentes queremos registrar aqui uma homenagem a este Herói, pedindo a Deus que lhe recompense, estando ele onde estiver.”

De volta ao lugar dos fatos

Em conversa e questionando José Adorno sobre os detalhes do fato, perguntei se atualmente conhecia alguma pessoa que estava no trem, disse-me que não e os que ele conhecia pelo tempo já não estão mais entre nós.

Comentei que conhecia uma pessoa que estava no trem e que na época morava em Santo André/SP, porém depois que aposentou-se, por coincidência veio morar em Mogi Mirim, e gostaria muito de encontrá-lo para agradecê-lo.

Na sexta-feira, 20 de março, fui com o Sr. Milton até a casa do Sr. José, que nos recebeu com sua esposa Teresa. Confesso que fiquei ansioso pelo encontro deles. José e Teresa nos receberam sorrindo. Apresentei-os e Milton finalmente o agradeceu pessoalmente por ajudar a salvar sua vida e de sua família. Foi um momento ímpar e José disse: “meu pai fez o que tinha de ser feito”.

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Conforme havíamos combinado, dirigimos até Martin Francisco para o lugar onde houve o fato há 58 anos atrás. José é uma pessoa falante e o tempo todo nos contava detalhes do acontecido, lembrando que era sexta-feira à tarde e o tempo estava carregado e ameaçava chover forte, José comentou “vamos logo pois vai chover e se vier de novo uma tromba d`água?” (todos riram).

No local houve mudanças e novas construções, porém José e Milton puderam ver o local onde os trilhos ficaram pendurados e depois mais acima José nos mostrou onde seu pai parou o trem, evitando a catástrofe que o tornou heroi nacional.

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História baseada em relatos de José Ferreira Adorno (74), Milton Carlos Silveira, antigos moradores locais, fontes de pesquisas: Arquivo Público do Estado, revista O Cruzeiro, Jornais da época.


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