27/06/2015

ENTREVISTA: Roberta Sia Marsola

Conheça a história da professora de Artur Nogueira que deu uma bela lição ao enfrentar uma verdadeira maratona para salvar a vida de uma criança desconhecida. Ela foi aprovada com 100% de compatibilidade em um transplante de medula óssea – casos assim acontecem de 1 em 1 milhão.

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“Tenho dois filhos: um que nasceu da minha barriga e um que nasceu da minha medula” (Roberta Sia Marsola)

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Isadora Stentzler

“Deus não faz milagre pela metade”, diz convicta a professora de Geografia Roberta Sia Marsola, que entendeu a hora de cada coisa depois de doar medula óssea mesmo tendo anemia. Ela está tranquila na sua casa, sentada na varanda, cabelos arrumados, levemente levantados, e me fita com doces olhos verdes – marejados ao contar da história. A voz terna e ligeira, apressada para pontuar em minúcias os fatos que se sucederam na vida a partir dos 8 anos de idade, embala o conto.

Vou explicar. Roberta sempre teve muitos sonhos. O principal era fazer a diferença. De Santa Helena de Goiás (GO), onde nasceu, veio para Artur Nogueira na primeira infância às custas do pai, que sofria de problema renal. O tratamento era complexo, isso porque ele carecia de um transplante de rim. Entre a família não foi encontrado nenhum doador. E como era triste para a menina de nem oito anos ver o pai em tratamentos pesados, necessitando de um órgão a mais, devido à falência do seu.

Os rins, que deveriam filtrar o sangue para eliminar substâncias maléficas, como amônia, ureia, ácido úrico… não funcionavam. Por causa disso, ele entrou num processo chamado insuficiência renal com o caos: ou ele passaria por diálise ou por um transplante de rim. No caso do pai de Roberta, era a segunda opção que o salvaria.

Apesar de ser um procedimento bem eficaz ele garantia uma vida curta, não tão curta como se a operação nunca fosse realizada, mas curta a ponto do transplantado não sonhar em viver, vá lá, mais de quatro anos. E Roberta se entristecia. Que saga eram os exames de compatibilidade. A cada não recebido, era um dia a menos na vida do pai da garotinha.

Um dos tios de Roberta até quis doar o órgão. Mas por já ter passado por problemas infecciosos foi logo descartado, sem fazer o exame. “Deus”, pedia Roberta. “Salve o meu pai”. Na falta de mais parentes próximos, o tio, outrora ignorado pelos médicos, foi chamado. A notícia jogou plumas: o rim era compatível e seu tio estava apto a doar.

Transplante marcado, cirurgia um sucesso. “Foi um milagre, meu pai, que deveria viver quatro anos, viveu 12! Depois disso eu decidi que sempre ajudaria quem precisasse. Que doaria meus órgãos, meu sangue. Entendi o quanto isso era importante. Afinal, foi um presente viver 12 anos a mais com o meu pai”, enfatiza Roberta.

Aos 21 anos, ela procurou um hemocentro de Campinas para se cadastrar como doadora de sangue para retribuir o bem que fizeram a família dela. Porém, lhe foi negado a possibilidade. Ela possuía uma anemia do tipo traço talassêmico, leve, mas que a impedia de doar sangue em qualquer hipótese. Ela até tentou esconder a doença e buscou o hemocentro em outras ocasiões. “Achei que não seria diagnosticada”, conta. “Mas eles sempre descobriam. E diziam: ‘Mas você não sabia que tinha?’ Eu dizia: ‘Sim. Mas queria ver se vocês perceberiam’”. Tamanha era a ânsia de realizar uma doação.

Ela almejava por demais, por isso ficava atenta a todo tipo de ajuda que poderia oferecer de si. Não podendo com o sangue, começou campanha de doação de cabelo, para a produção de perucas às crianças com câncer. Foi mais de uma vez que deixou os fios de cabelo ultrapassarem os ombros para serem cortados e entregues a quem os cuidaria. Ainda mobilizou amigas. “Tem cabelo para doar? Traz aqui!”, anunciava às conhecidas.

Para Roberta estar no mundo não é viver com o olho no umbigo e prestando atenção no bem que se faz a si mesmo. Vida é doação…. ao próximo. “Acho que a gente está no mundo para fazer algo. Não estamos por acaso e a gente precisa fazer o bem”.

Nessa ela viu uma notícia que lhe presenteou com ouro em setembro de 2013. O texto soou assim: “Qualquer pessoa que tenha entre 18 e 55 anos, e que esteja em bom estado geral de saúde. A única restrição é para quem fez tratamento de radioterapia ou quimioterapia, ou ser HIV positivo. Quer dizer, se você tem anemia, diabetes, colesterol, etc, não tem problema. Pode procurar o hemocentro mais próximo e cadastrar-se normalmente.” “Se você tem anemia… não tem problema? Eu!” Roberta entrou em contato imediatamente com o Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome). Depois fez exames. E por boa notícia entrou no banco de doadores.

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“Eu contei para eles da minha anemia e eles me responderam ‘ok’, que eu poderia doar sim. E eu li muito sobre o assunto, dentro de mim eu tinha certeza que seria chamada para doar”. Não sendo suficiente, Roberta, que não tem pouca fé, conta: “E eu disse que seria para uma criança”.

Dois dias depois da notícia a professora já estava no hemocentro da Unicamp para a retirada das amostras de sangue e para fazer o cadastro de doadora.

Diferente da doação de sangue, em que é fácil encontrar receptores com o mesmo tipo sanguíneo, a compatibilidade de medula óssea é extremamente rara. O índice chega a 1 em 100 mil para 70% de compatibilidade e 1 em 1 milhão para 100% de compatibilidade, aumentando conforme o grau de parentesco. Como na família de Roberta não havia nenhum necessitado a chance de doar era mínima. Porém, não foi isso medido pela professora.

Oito meses depois, em maio de 2014, Roberta estava no trabalho e foi avisada do inesperado. Ao sair da sala de aula, no meio da tarde, recebeu um recado da sobrinha: “Roberta, você recebeu uma ligação do Redome”. Os olhos claros de Roberta umedeceram de imediato. A entidade que havia lhe procurado era a responsável pelo banco nacional de dados dos doares de medula óssea. Ou a notícia seria que havia um erro nos seus dados e de fato ela jamais poderia doar, ou… “Então liguei de volta e me falaram que havia aparecido uma provável compatibilidade. Nossa, aquilo pra mim, pra quem já tinha a certeza de que seria chamada, foi só a comprovação. Só era preciso que eu fosse lá fazer os exames”. Ao relembrar os olhos umedecem de pronto, não caem as lágrimas passadas, mas a emoção que lhe tomou é a mesma ao descrever o dia.

Era uma sexta-feira quando recebeu a ligação. No dia seguinte ela foi ao hemocentro da Unicamp para retirar mais sangue a fim de que fossem feitos outros exames de compatibilidade. “A moça que estava colhendo ainda falou para mim: ‘Mas olha, não é fácil porque a compatibilidade tem que ser mais de 70%…’ Mas eu dizia que seria chamada”.

Foram dois meses de espera pelos resultados. Roberta estava ansiosa. Foi em uma quarta-feira de julho que a perturbação passou: “Roberta você pode doar, é 100% compatível”, ouviu ela do Redome. Ela chorou muito! Havia chegado da escola em um dia comum e às 14 horas recebeu a melhor notícia do ano. Marcaram ainda uma entrevista no hospital do HC, em São Paulo, para explicar sobre os procedimentos, porque já tinham a data do transplante. Nesse dia, uma segunda-feira, outra surpresa: a doação seria para uma criança. “Aquela voz interior que me falava que eu doaria para uma criança era mesmo real. Foi uma sensação de que Deus existe. Que havia uma criança esperando por mim, porque só eu poderia dar chance de vida para ela. Foi uma sensação de que há algo em cima da gente.”

Ela não fazia ideia para qual criança estava indo a sua medula. Rosto. História. Mas isso não importava. Não pesava. Era uma vida. E não importava de quem. Mãe de um menino de cinco anos, ela imaginava que era alguém como ele que estaria recebendo uma chance para continuar na vida. Pensar no filho dela, agora, era também pensar nessa outra criança que ela ajudaria a salvar. “As pessoas tem muito medo da dor. Mas o que é a dor, a dor da doação, perto da dor de tantos anos que a pessoa que espera medula óssea sente?”

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O transplante havia sido agendado para agosto, mas a criança que receberia sua medula teve algumas complicações e a data foi adiada. Depois, Roberta esteve doente. E entre as sucessivas remarcações se passaram onze meses desde o primeiro contato com o Redome. Foi esse um tempo de esperança.

Chegada a data, 16 de abril, Roberta foi encaminhada ao hospital do GRAAC, em São Paulo, onde os procedimentos aconteceriam. A doação seria feita em centro cirúrgico, sob anestesia, e duraria aproximadamente duas horas. Seriam realizadas múltiplas punções, com agulhas, nos ossos posteriores da bacia, de onde é coletada a medula, em uma quantidade de aproximadamente 15%.

Para Roberta, tudo bem. Preparada para o dia e na sala de espera, ela ainda conseguiu ver na ficha de procedimentos uma letra: K, e descobrir: 16 quilos, Paraná. A pessoa para quem Roberta estaria doando a medula óssea pesava 16 quilos, faria a cirurgia em Curitiba (PA), tinha cinco anos, e um nome que começava com a letra K. “Ouvia sobre o Kevin, o Kevin. E acho que é esse o nome dele, Kevin.”

O procedimento fora tranquilo. Deu certo. No dia seguinte Roberta voltava para Artur Nogueira e em cinco dias já estava no trabalho. “Em nenhum momento eu tive medo. Em nenhum momento eu tive dúvida, mesmo sabendo que passaria por uma anestesia geral. É que não existe milagre pela metade. Você não é escolhido para ser um doador à toa. Se eu for pensar em risco, eu não saio da cama. Então em nenhum momento eu pensei nisso. Era a minha missão doar essa medula.”

Hoje, três meses depois da doação, ela já está pronta para outra. Em um ano e meio ela também poderá conhecer o doador. Coisa que já colocou na agenda. “Com isso eu ganhei mais um filho. Já tenho um que nasceu da minha barriga e outro que nasceu da minha medula.”

De tudo o que passou ela pontua com clareza: “A saúde é o bem mais precioso. Você pode ter de tudo. Mas se você, se seu filho não tiver saúde, de nada vai adiantar. É preciso ter fé e coragem”. E de novo disse: “Não existe milagre pela metade.”

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