17/08/2013

ENTREVISTA: Dr. Daniel Silva e Dr. Luiz Cietto

Conheça a história inspiradora de dois homens que eram moradores de rua e, graças a dedicação aos estudos, mudaram completamente de vida. Um trabalhou na Receita Federal. O outro foi o fundador do curso de Enfermagem da Unicamp. Hoje moram em Artur Nogueira e Eng. Coelho

Dr. Daniel e Dr. Cietto“Nós somos a prova viva do poder transformador da Educação” (Cietto e Daniel)

Texto: Alex Bússulo / Produção: Rafaela Martins, Paulo Holdorf, Schermen Dias / Fotos: Renan Bússulo

A entrevista a seguir talvez seja a mais inspiradora já publicada por este veículo de comunicação. Você vai conhecer a história de dois homens. Dois eternos amigos que vão nos passar uma belíssima lição de vida, de amizade, de superação e de valorização da família. Você também vai ver como a educação pode transformar vidas.

Os dois fugiram das casas dos pais e foram morar nas ruas. Viviam uma realidade miserável em São Paulo, dormindo em construções e carros abandonados. Sempre com muita fé em Deus, os dois, ambos adventistas do Sétimo Dia, estudaram e conseguiram mudar radicalmente de vida. Um deles se transformou em auditor da Receita Federal e outro foi o criador do curso de Enfermagem da Unicamp. Hoje, ambos com 80 anos de idade vivem em Artur Nogueira e Engenheiro Coelho.

Para entendermos melhor essa história precisamos voltar há algumas décadas. Por volta dos anos 50, Luiz Cietto morava com os pais e mais sete irmãos em São Carlos/SP. A infância dele não foi nada fácil. “Meu pai era muito rigoroso. O sistema de educação dele era muito severo. Ele não admitia deslizes. E pequenos deslizes significavam grande sovas de rabo de tatu, que era um tipo de reio feito de couro de gado, couro cru. Essa situação de sofrimento acabou gerando um certo espírito de revolta. E daí eu resolvi sair de casa”, relembra Cietto.

Não querendo mais apanhar do pai e em busca de um futuro melhor, Cietto arrumou algumas poucas peças de roupas e fugiu de casa. Pegou o trem e foi para a grande São Paulo. Sozinho, sem dinheiro e sem saber o que fazer, o jovem enfrentou um grande desafio. “Ao chegar em São Paulo, quando desembarquei na Estação da Luz, me deparei com a verdade nua e crua. Uma selva de pedras como São Paulo, sem conhecidos, sem dinheiro, sem casa, sem alimento. Passei a viver na rua”, afirma Cietto.

Daniel teve uma história muito parecida com a de Cietto. Daniel morava com os pais e dez irmãos em uma fazenda em Jaboticabal/SP. E, assim como Cietto, o relacionamento com a família não era nada bom. “Meu pai era um homem muito rigoroso, eu apanhava muito, apanhava de graça. Quando ele ia bater em um, que tinha aprontado alguma arte, ele mandava abraçar dois a dois e batia em quase todos os filhos. Com isso comecei a ficar com ódio de meu pai. Minha intenção e meu pensamento era que quando eu ficasse homem eu pegaria ele pelo pescoço e o mataria. Eu tinha esse propósito. Depois eu pensei bem, sabia que se fizesse isso iria parar na cadeia, então arrumei um dinheirinho e fugi de casa”, relembra Daniel, que também foi para a grande São Paulo.

Dr. Daniel

E foi lá, em uma das maiores cidades do mundo, que o destino cruzou o caminho dos dois garotos. “Em uma tarde, eu estava em frente a uma padaria pedindo comida, quando vi um garoto sozinho, mais ou menos do meu tamanho, idade parecida. Então me aproximei dele e comecei a conversar. Descobri que ele estava em uma situação muito parecida com a minha, então começamos a andar juntos, a partir daquele momento nunca mais nos separamos um do outro”, relembra Daniel.

Os dois passaram a sobreviver em São Paulo. “Descobrimos que dava para utilizar alguns carros, veículos abandonados, para dormir. Adotamos a filosofia da sobrevivência. A gente tinha que ser bastante hábil para conseguir as coisas. Descobrimos que o jornal é um elemento fantástico para nos proteger do frio. A gente enrolava jornais velhos nos braços, nas pernas, colocava algumas folhas de jornal por cima e ficava quentinho”, afirma Cietto.

Os dois amigos relembram que para tomar banho tinham que fazer praticamente uma viagem. “Nós subíamos nos bondes e íamos para Santo Amaro/SP onde havia uma represa. Chegávamos lá, tirávamos e lavávamos as nossas roupas e, enquanto elas secavam na grama, tomávamos banho na represa”, conta Cietto.

Dr. Cietto

Boa parte do tempo, Cietto e Daniel passavam dentro da Biblioteca Pública de São Paulo, onde liam de tudo, dos clássicos, passando pelos religiosos aos livros de autoajuda. “Era uma coisa que a gente fazia porque eu gostava de ler e ele também. Nós entrávamos na biblioteca e passava o dia ali, lendo”, conta Daniel.

Cietto complementa: “A gente lia os jornais, procurava emprego, lia livros. Eu, por exemplo, li muitos livros de crítica literária, clássicos como Machado de Assis. Isso me deu uma base que depois, como advogado, foi uma ferramenta indispensável para escrever bem”, afirma Cietto.

Os dois jovens tinham todas as desculpas imagináveis para entrar no mundo do crime. Falta de apoio familiar, falta de dinheiro, falta de atenção. Mas eles decidiram ir em busca de algo melhor. “Essa fase de menino de rua foi uma fase que poderíamos chamar de contraditória, porque tinha tudo para nos levar para vida do crime. Porque um garoto no meio da rua, no meio de marginais, drogados, traficantes e bêbados tem tudo de ruim para ser influenciado”, conta Cietto.

A vida não foi nada fácil, até o surgimento do primeiro emprego. “Nós precisávamos encontrar um emprego então fomos atrás das oportunidades. Lembro-me como se fosse hoje, entrei em uma tinturaria de um japonês e pedi uma oportunidade para trabalhar. O dono não queria me contratar, pois eu era menor de idade. Mesmo assim eu insisti e pedi uma oportunidade. Acho que o japonês ficou com pena e me deu o emprego. Minha tarefa era buscar e entregar as roupas dos clientes. Como tinha muita vontade de trabalhar, aprendi a lavar e a passar roupas e, logo, fui promovido a passador. Foi nesse período que conseguimos sair das ruas”, relembra Daniel.

Dr. Daniel

Com o emprego, Daniel alugou um pequeno quarto no porão de uma pensão, onde dividia a moradia com o único amigo. “Nós dormíamos juntos em uma caminha de solteiro. Além do aperto, tinha um cano da pensão que passava bem em cima da cama e gotejava muito. Então, a gente levantava, pegava o cobertor e o lençol sentava no chão e dormia sentado. Era ruim, mas muito melhor do que dormir nas ruas”, conta Daniel.

O tempo passou e uma nova oportunidade de trabalho surgiu. Desta vez para os dois amigos. “Nós descobrimos que o Hospital das Clínicas em São Paulo estava admitindo atendentes de Enfermagem. A essa altura, já tínhamos idade para poder trabalhar. Fomos até o hospital e fizemos um teste psicotécnico. Quando o resultado saiu foi apontado que nós dois não poderíamos trabalhar porque tínhamos problemas psicológicos. Daí, nós falamos que se estávamos doentes deveríamos ser tratados ali, afinal estávamos em um hospital. O homem então disse que era para retornarmos no dia seguinte. Quando voltamos o mesmo homem disse que havia ocorrido um equívoco e que nós tínhamos passado no teste. A partir daí fizemos um treinamento e começamos a trabalhar”, afirma Cietto.

Como atendentes de Enfermagem, naquela época, Daniel e Cietto passaram a cuidar dos pacientes. “Fazíamos o básico, como dar banho, levar para o banheiro. Hoje, não existe mais essa função de atendente”, afirma Cietto.

Dr. Cietto

Depois de alguns anos, os dois atendentes quiseram ir mais longe. “Fomos até o Departamento de Enfermagem e pedimos para a diretora uma audiência com o superintendente do hospital. Explicamos que queríamos pleitear ao diretor uma bolsa de estudos para fazer o curso superior de Enfermagem. Para falarmos com o superintendente, e também com a diretora, utilizamos uma técnica que aprendemos ao ler o livro ‘Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, do autor Dale Carnegie, que lemos na biblioteca. Conversamos com o superintendente e conseguimos a bolsa de estudo. Lembro-me que éramos poucos homens cursando Enfermagem no meio de mais de 50 mulheres. Havia muito preconceito. Mas conseguimos estudar e concluir o curso”, afirma Cietto.

Depois de terminar a universidade, os dois amigos se tornaram enfermeiros chefes do Hospital das Clínicas, onde lideravam vários setores. Cietto continuou se especializando na área da Saúde, fez vários cursos de pós-graduação, incluindo mestrado e doutorado. Como professor de Enfermagem, deu aula na Universidade de Mogi das Cruzes e na Universidade de Londrina, no Paraná. Em 1978 ingressou na Unicamp onde chegou a exercer a função de professor titular. Depois fez pós-doutorado nos Estados Unidos, na Columbia University. Cietto também fez pós-doutorado em Direito, onde aliou Direito e Saúde, fazendo pesquisas na Universidade de Bolonha, que é a mais antiga da Europa. “Na Unicamp, fui o fundador da faculdade de Enfermagem, também fui um dos fundadores do Hospital das Clínicas. Eu que organizei o primeiro vestibular na Unicamp para área de Enfermagem, supervisionei, corrigi provas. Daí então o curso foi crescendo, eu fui estruturando o corpo docente e iniciei com professores que eram enfermeiros do próprio hospital”, afirma Cietto.

Dr. Cietto

Já Daniel buscou outras áreas. Fez Contabilidade. Quando terminou a graduação viu um edital de convocação para um concurso de auditor da Receita Federal. Se inscreveu, prestou o concurso e logo recebeu uma boa notícia. “Passados uns 15 dias após eu ter feito o concurso recebi um telegrama em casa da Receita me convocando com urgência, mas eu não dei muita bola porque achava que não tinha ido muito bem na prova. Achei que o telegrama era a respeito de documentação, etc. Aí chegou um segundo telegrama marcando dia e hora para posse, aí fui correndo lá. Depois de um ano de treinamento me tornei auditor da Receita Federal”, conta Daniel, que se aposentou em 1984. No meio deste tempo ele também cursou a faculdade de Direito.

Dr. Daniel

Outra lição transmitida por estes dois amigos é que após o crescimento profissional eles não se esqueceram da família. “Quando eu já estava formado, bem de vida, voltei para a cidade que meus pais moravam, lá em São Carlos, e os convidei para virem morar comigo, em São Paulo. Eles aceitaram e se mudaram. Acompanhei os dois até o final da vida deles. Era interessante, porque antigamente meu pai era o durão, depois quando veio morar comigo ele passou a me respeitar, afinal eu era um doutor. Essa foi a oportunidade de um relacionamento com a família. A reação poderia ser totalmente adversa, eu poderia rejeitar minha família, mas não fiz isso. Fiz o que pude para eles porque era o certo a fazer”, afirma Cietto.

Daniel fez a mesma coisa. “Quando voltei para a casa dos meus pais, eles até se assustaram, pois pensavam que eu já estivesse morto, pois fiquei anos fora, sem dar notícia. Arrumei uma casa, toda mobiliada, e os trouxe para São Paulo”, afirma Daniel.

Cietto casou-se e teve duas filhas. Hoje, mora com a esposa no Condomínio Lagoa Bonita, em Engenheiro Coelho. Daniel também casou-se e teve três filhos. Atualmente ele mora em Artur Nogueira, onde tem um escritório de advocacia no centro da cidade. Mesmo após tantos anos passados, os dois continuam amigos inseparáveis.

A história de vida destes dois já virou um documentário (ASSISTA: Parte 1, Parte 2) e, agora, está sendo retrata em um longa-metragem produzido pela Associação Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia, localizada nos Estados Unidos. Uma lição de vida que será transmitida para vários países. “Independente da origem da pessoa, seja ela pobre ou rica, ela pode mudar de vida, se ela estudar, correr atrás, não precisa ter dinheiro. Hoje é mais fácil do que naquela época. Tem faculdade de graça, cursos de graça, coisa que naquela época não tinha. Basta ter fé em Deus e vontade de vencer”, afirma Daniel.

Dr. Cietto[Acima: entrevista com Dr. Cietto, criador do curso de Enfermagem da Unicamp. Abaixo: entrevista com Dr. Daniel, que trabalhou como auditor da Receita Federal]Dr. DanielDaniel e CiettoCaricatura: Tomás de Aquino


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