10/08/2014

O último suspiro de um pai

Crônica dos não comemorados Dia dos Pais

Por Isadora Stentzler

Foram muitos anos querendo uma visita. Um telefonema dizendo “olá”. Uma carta. Mas só o que tinha era uma foto na carteira. Um retrato amassado, envelhecido, que fazia os olhos expelirem gotas vindas do coração. Era a foto da família de Francisco. Gente que ele só tinha em imagem. Não porque estivessem mortos, mas porque estavam vivos e da presença dele não faziam questão.

Fosse natal, fosse ano novo, fosse páscoa, fosse carnaval. Não importava. Da presença de Francisco nunca faziam questão.

E quantos dias passou assim. No lar de idosos que se tornou sua casa, a cama era de solteiro, o quarto pequeno e os felinos que vagueavam ali, seus filhos. Uma tentativa de manter presente àqueles que nunca mais vira. Ou melhor, aquelas. Filhas que não queriam mais saber do pai. Talvez porque bebia demais. Talvez pela geladeira nova riscada à faca quando estava possuído pelo álcool. Eram muitos talvez de lembranças ruins para o segundo domingo de agosto.

Naquele dia dos pais, Francisco, pai, não tinha com quem comemorar. Assistia quieto outros recebendo beijos e abraços das proles. Caixas de bombons. Presentes. Bilhetes. Lembrou-se então do último dia dos pais que havia comemorado. Era um domingo com churrasco. Uma das suas meninas usava um vestido amarelo com pequenas tulipas vermelhas estampadas. A outra, um short jeans e camiseta. Estavam lindas. A mais nova, diziam muitos, era a cara de Francisco. Felizes, almoçaram e comeram um pudim de sobremesa. Ganhou até uma camiseta estampada de presente. Blusa que segurava bem apertada na mão direita naquele segundo domingo de agosto enquanto via a comemoração dos demais.

A cada troca de carinho presenciada, cravos eram fincados no seu coração. Ele não entendia. Foi deixado ali. O deixaram ali. Por que não o visitavam? De novo os talvez lhe perturbavam. O dia dos pais não era mais uma data feliz. Na verdade, há anos não era mais uma data feliz.

Voltava a lembrar do churrasco daquele domingo. O sorriso das filhas. O abraço da esposa. A família unida. Lá no lar de idosos, não tinha nada disso. Caminhou então para o quarto onde tinha uma pequena caixa que ele chamava de tesouro. Ali escondia bilhetes. Relíquias daqueles tempos. Foi aí que não aguentou. O homem de 69 anos se desmontou e voltou, em choro, a ser bebê. Mas não adiantava espernear, ninguém viria. Até tentaram ligar para a família. Em vão. Ninguém apareceu. Ninguém quis aparecer.

Os enfermeiros já sabiam que naquele dia Francisco ficaria assim, doente por saudade. É que há décadas as filhas o deixaram ali e não apareceram mais.

A culpa, contaram na despedida, era o vício do pai. Francisco bebia. Saia de casa e voltava dias depois, agressivo. O álcool funcionava como nitroglicerina no seu organismo. Mas isso mudou. Depois de anos de acompanhamento médico e cuidados no lar dos idosos, Francisco se transformou. Metamorfose não assistida pela família. Metamorfose não entendida pelas filhas.

“Se ao menos me vissem agora”, lamentava. No final daquele dia que para outros foi de festa, Francisco deitava na cama pensando em um epitáfio. Não escondia que desejava a morte. Porque para ele, isso seria mais uma tentativa de ter as filhas por perto. Ainda que depois do seu último suspiro.

Nota da autora: Esta história foi feita com recortes das copiosas histórias vividas no dia dos pais no Brasil. Francisco não é uma pessoa real. É apenas um Frankstein nascido das vastas decepções paternas que já ouvi, incluindo aqui em Artur Nogueira.


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