27/02/2016

Jornalista de Artur Nogueira escreve livro sobre violência doméstica

Em ‘Depois do Sim’, Jhenifer Costa conta histórias reais de sobreviventes de agressão doméstica: “A mulher não tem um perfil para isso acontecer. Ela é uma vítima. Quem tem características que se repetem é o agressor.”

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Por Isadora Stentzler

A primeira vez que Jhenifer ouviu falar sobre violência doméstica foi aos sete anos. Ela estava sentada na sala de casa quando escutou seus pais conversarem sobre a agressão sofrida por uma tia. “Ele bateu nela com uma panela de pressão”, contava a mãe sobre como havia se dado o caso dias antes. Ao ouvir isso, Jhenifer se assustou. Era uma menina “muito nova para esse tipo de assunto”, mas não conseguiu aquietar-se ante a história despejada à família. “Como isso aconteceu?”, retrucou o pai, preocupado. Sem perceberem que a menina ouvia tudo, discorreram sobre o crime frio e como nada havia sido feito para proteger à vítima, que para Jhenifer era a tia, gente da família, gente de perto. Tomando então as dores, a garotinha de cabelos encaracolados saltou ao colo da mãe e interviu: “Mãe, mas por que ele fez isso?” De pronto, assustaram-se os pais que responderam coisa qualquer para desatentar a garota, na intenção de livra-la do assunto. “Mas mãe”, insistiu Jhenifer, “saiu sangue?” E sem respostas foi posta de lado.

A história mal contada não abandonou a menina, que por dias se viu atormentada com o caso. “Como pode um homem bater em uma mulher por nada?” A violência desmedida não era entendida pela criança e se tornou pior quando ouviu da própria agredida: “Eu o amo”, em resposta ao por que não procurou a polícia.

Ao mesmo tempo em que Jhenifer vislumbrava ali o primeiro caso de violência, descobria que nesses assuntos há vítimas silenciadas, apaixonadas e que mesmo em dor, não denunciam os agressores.

Anos depois, em 2011, ela descobriria também que ser mulher era o único fato necessário para que o crime acontecesse.

Na época, junto da irmã, ela saiu da escola e foi a casa de uma amiga. Colega de aula. A visita ia bem e as meninas riam conversando sobre coisas que se conversam aos 16 anos de idade. De repente o choro substituiu o riso. Sem ais ou avisar, o irmão da colega passou pelas meninas e ao esbarrar nos pé de Jhenifer, estendidos ao chão, ele a esbofeteou. As garotas que assistiam a cena começaram a empurrá-lo na tentativa de tirá-lo de cima da adolescente. Mesmo assim ele era mais forte e os pontapés das meninas lhe eram como cócegas. Quando enfim saiu de cima de Jhenifer, foi embora sem expressar sentimento algum. E a menina correu para casa, descalça, em prantos e perguntando-se por que. “Acho que se esta experiência não tivesse acontecido comigo não teria nascido este livro”, confidencia cinco anos depois do ocorrido, na noite de quinta-feira (25), enquanto segurava a obra ‘Depois do Sim’, livro em que apresenta a violência contra a mulher como um problema crônico, mas combatível.

Jornalista, Jhenifer fez, da experiência que passou se transformar em sua causa e hoje já tem um projeto em desenvolvimento em Sorocaba a fim de atender mulheres vítimas de violência e também agressores. “Quando se fala sobre esse assunto é preciso perceber que o agressor também é uma vítima. Nada justifica a ação dele. Mas o que levou ele a fazer isso deve ser combatido”, esclarece.

Em Artur Nogueira há dois meses, Jhenifer frisa várias vezes a intenção de trazer o mesmo projeto para cá e se envolver em ações pelas mulheres na cidade.

Como foi produzir ‘Depois do Sim’? Este livro é a realização de um sonho. Após completar 16 anos, decidi que precisava me envolver na luta contra a violência doméstica e contra o gênero. Já na faculdade de Jornalismo, senti-me desafiada pelas histórias que ouvia desde a infância e por mim mesma a escrever um livro sobre o assunto. Mas é claro que isso não aconteceu de uma hora para outra. Eu tenho minhas histórias e meus motivos. O fato é que em 2013 eu comecei a me envolver em campanhas, ongs, além de entrar em contato com dezenas de vítimas de violência doméstica. Então, mais do que nunca, percebi que eu precisava dar o primeiro passo. Transformei esse projeto pessoal no meu Trabalho de Conclusão de Curso. Assim, sabia que a qualidade seria superior, pois teria a supervisão de um professor qualificado. O processo da produção foi absolutamente fácil, visto que esse crime é recorrente. As fontes caíram sobre mim aos montes. Percebi que muita gente quer falar sobre o assunto, a fim de acabar com a violência doméstica. Mas ao começar as entrevistas com as personagens do livro e especialistas, senti que o caminho não seria fácil. O meu dever como jornalista é ser imparcial. Sempre. Mas como permanecer assim depois de tantas histórias de abusos? Eu mudei com este livro. As coisas foram ficando cada vez mais difíceis para mim. Fui absorvida pelo universo do feminismo, pelas vítimas, pela Lei Maria da Penha e por tudo que envolve o gênero. Quando me dei conta eu estava completamente afetada. Eu lia as entrevistas e chorava. Ao terminar de escrevê-lo, procurei um lugar calmo e chorei durante horas. Foi um período difícil. Por mais que eu tentasse ajudar as vítimas, como podemos apagar as lembranças que ficam na mente delas? Isso nunca será possível. Foi então que eu finalmente entendi qual deveria ser o principal objetivo do meu livro: coibir a violência contra a mulher por meio da educação. Assim, a obra Depois do Sim se apresenta como um manual, que contêm histórias impressionantes de vítimas, mas também aponta quais são as causas e como preveni-las. Sobretudo, entendi que precisava deixar claro o papel da Lei e da Justiça, além dos passos que devem ser dados pelas vítimas em casos de agressão. Com isso, quero que as mulheres não sofram violência. Quero que através da leitura do livro elas percebam o quão destrutivo pode ser um relacionamento abusivo. Quero que elas se previnam e não se submetam às agressões gratuitas de seus “parceiros”. Sobretudo, se isso acontecer, quero que através do livro elas saibam o que fazer. Quero que elas saibam recomeçar e que jamais deixem de acreditar em si mesmas.

Seu livro será usado em um projeto em Sorocaba… Quando comecei o processo de apuração descobri que Sorocaba é uma das poucas cidades do Estado que investe dinheiro, educação, pessoas e justiça na luta pelo fim da violência contra a mulher. Lá, eles têm centros de referência aos agressores e às vítimas. Além disso, no município existe uma Vara da Mulher, exclusiva. Fiquei empolgada ao perceber que a cidade se preocupa com a saúde e o bem-estar da mulher, de modo geral. Então, fui em busca de ajuda para escrever meu livro. Claro, fui muito bem recebida pelas pessoas com quem conversei. Foram muitas pessoas. Ali eu vi pessoas realmente envolvidas e engajadas na causa. Gente que é voluntária, gente com determinação. Por isso, ofereci meu livro para ser usado na cidade como uma forma de protesto à violência doméstica. Assim, o livro Depois do Sim estará disponível em todos os locais de apoio as mulheres vítimas de violência ou possíveis vítimas. A ideia foi muito bem aceita por todos, pois, é claro, é mais um elo na corrente. Obviamente, esse plano será reproduzido em tantos lugares quanto possível. É por isso que chamo esse livro de “projeto”, porque ele faz parte de uma luta e tem um objetivo claro. Este livro é para ser uma ferramenta no meio de todo esse movimento em favor da mulher.

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E em Artur Nogueira? Pretende desempenhar algo parecido? Com certeza. O que eu mais quero é realizar este projeto na cidade. Já que me mudei para cá há poucos meses. O meu plano é o mesmo de Sorocaba, mas acrescento que aqui gostaria de conversar com as vítimas, gostaria de visita-las, de ajuda-las a recomeçar. Quero me envolver mais e mais. Sei que precisamos falar sobre o assunto, caso contrário, será como a sujeira embaixo do tapete: ninguém vai enxergar.

Como mulher, acho que é impossível não sentir empatia apurando histórias de violência contra o gênero… Absolutamente. Tornei-me amiga das vítimas. Abracei a causa. Além de compartilhar da profunda aversão por agressores. Após mergulhar nessa realidade, passei a me relacionar mais com as vítimas e me tornei mais sensível ao assunto – ainda mais. Confesso que muita coisa mudou em mim. Acredito que também me tornei uma pessoa bem mais intolerante às violências praticadas contra o ser humano. Eu realmente quero fazer minha parte na sociedade, mesmo que seja só eu no meio de mil pessoas. O importante é que vou fazer minha parte.

Todas as histórias são impactantes. Mas houve uma que mais lhe marcou e poderia contar? Ouvi dezenas de histórias. Muitas horríveis e que me causaram profundo desespero. É claro que eu não consegui colocar metade no livro. Escolhi três histórias, mas foi um processo complicado. Quis mostrar através das personagens escolhidas que a violência doméstica atinge vários perfis de mulheres. Escolhi a dedo as histórias. Quem lê o livro sabe porque fiz isso. Está bem claro. Ou seja, essas três histórias são as que mais me marcaram dentre tantas outras. Mas se posso apenas escolher uma, acredito que a história da Creusa foi a que mais me impactou. Por vários motivos. Primeiro, por todos os momentos de agressão que ela sofrera. Inclusive, pelas inúmeras vezes que tentou ser assassinada pelo ex-marido. Em alguns momentos durante a entrevista, eu parava para refletir naquele relacionamento e ficava transtornada com a capacidade destrutiva que um homem pode ter. Sobretudo, o que mais me marcou em todo o processo de produção e também no livro foi o fato do pai tentar assassinar o próprio filho. Sim. Realmente, tentativa de homicídio clara, na frente da mãe. Isso nos mostra como a violência doméstica não afeta somente a mulher, mas também os filhos. Eles sofrem muito, e as vezes até mais que a própria mãe durante o ciclo da violência.

Segundo uma pesquisa Data Senado de 2013, 20,7% das mulheres que admitiram ter sofrido violência doméstica nunca procuraram a polícia. Como mudar esse quadro? Para entender essa questão é preciso compreender o contexto da violência doméstica. Especialistas acreditam que existem cinco motivos que fazem com que as vítimas permaneçam com seus agressores, tais: medo, filhos, dependência financeira, dependência emocional e vergonha, respectivamente. Esses são os motivos que as mulheres não denunciam seus agressores. Inclusive, muitas chegam a ser assassinadas pelos parceiros sem nunca terem os denunciado antes. Mas existe outra questão muito mais séria em torno dessa discussão. Outra pesquisa feita pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2015, (Violência contra a Mulher e as Práticas Institucionais) apontou que 9% das vítimas se sentem culpadas pelas agressões que sofrem. Tem como piorar essa situação? Sim! Esse número constata que as vítimas se sentem merecedoras da violência, dando ao agressor mais poder, inconscientemente. Diante disso, a situação é muito mais delicada, mas felizmente, tem solução. Eu acredito que a única forma de mudar isso é através da educação e da conscientização das vítimas. Por isso é que nasceu o Depois do Sim. Muitas vezes as vítimas estão cegas ou entorpecidas pelos abusos que vivem. Elas precisam de algo que as faça entender o quão grave e prejudicial é um relacionamento abusivo. Elas precisam de conscientização e, principalmente, de alguém ou algo que as motive a denunciar e recomeçar.

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Fora do quadro da violência doméstica e falando sobre violência contra a mulher, quatro jovens foram agredidas em Artur Nogueira no último dia de carnaval. Segundo elas, houve omissão da polícia quando elas pediram ajuda. O que fazer quando o sistema é falho e não ampara as vítimas? Esse tipo de notícia me deixa sem reação. Pois nesta causa não podemos fazer praticamente nada sem o apoio da Lei. Como a Lei que deveria nos proteger, nos oprime? A quem vamos recorrer? Isso é um absurdo! A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) é completa, mas não adianta nada se ela não é colocada em vigor. Na prática, ela tem que ser muito mais eficiente que no papel. Não podemos cogitar a possibilidade de viver sem o apoio da Lei, da Justiça e da polícia. Estas ferramentas estão aí para isso. A polícia é obrigada a nos proteger. Esse é um direito nosso. Se isso não acontece, a população precisa intervir. Infelizmente, nesses casos a população precisa se posicionar. Temos que ajudar uns aos outros. Além disso, a comunidade tem que se unir em favor da justiça. Sonho em viver num mundo em que as pessoas cuidem uma das outras. Sobretudo, sonho em viver num mundo em que as mulheres não sejam violentadas.

 É possível delinear um perfil da mulher vítima de feminicídio? Psicólogos e especialistas acreditam que não é possível dizer que existe um padrão, porque cada mulher tem um histórico de violência e de vida muito singular. E mesmo que tivesse não é possível prever, pois tudo depende de um momento peculiar. A mulher pode sofrer diversas violências, desde a moral até a sexual. Inclusive, todas as violências explícitas na Lei Maria da Penha podem levar a mulher à morte. (Em 2015, em abril, uma lei foi sancionada em para punir homens que matam mulheres grávidas ou apenas por serem mulheres). As vítimas podem morrer por causa de um estupro seguido de assassinato na rua, praticado por um desconhecido. Mas também podem morrer por causa de uma sequência de violência física na própria casa pelo parceiro. O feminicídio acontece em função do agressor, porque ele fere a vítima. A mulher não tem que ter obrigatoriamente um perfil para isso acontecer. Ela é uma vítima. Quem tem características que se repetem é o agressor. No decorrer do livro, conversei com mulheres que quase foram vítimas do feminicídio e com pessoas que conheciam vítimas de feminicídio, o que concluí é que para ser morta por um homem violento, basta ser mulher.

E quanto ao perfil do agressor? Vou elencar de maneira bem clara para que qualquer leitor(a) saiba identificar facilmente. O agressor geralmente é um homem com um histórico perturbado. É alguém que já sofreu violências, especialmente na infância. Estes homens reproduzem os traumas da infância na parceira e nos filhos. No cotidiano, eles são pessoas de pouco diálogo com a família. Basicamente, na rua são uma coisa, em casa outra completamente diferente. A maioria esmagadora é alcoólatra, agredindo a esposa sob o efeito do álcool. Sem mencionar os que consomem drogas ilícitas. Eles são pessoas temperamentais, grosseiros e dificilmente param num emprego por muito tempo. São o tipo “machão”, que não leva desaforos para casa. Agora, para completar, o agressor é desrespeitoso com as mulheres de modo geral. Está sempre assediando mulheres na rua e no trabalho. É preciso muito cuidado, pois este agressor não teria problema algum em estuprar uma adolescente ou uma jovem ao surgir uma oportunidade.

Há alguma relação entre abuso – seja na rua ou em casa –, violência doméstica e feminicídio?  Mais do que imaginamos. O abuso em todas as suas frentes fere a integridade moral e física da mulher. O abuso, no sentido literal da palavra, é corrosivo e destruidor para a vítima. Este abuso é uma forma de violência. O abuso na rua faz com que a mulher seja violentada. O abuso também faz a mulher ser violentada em seu próprio lar. E um número considerável das vítimas morrem no contexto doméstico. Então, diga-se de passagem, há uma relação sim entre abuso, violência doméstica e feminicídio. Eu diria que na ordem, essa é a sequência fatal para a morte das vítimas.

É importante que a prefeitura crie programas de assistência a mulheres vítimas de violência doméstica? Se iniciativas educativas, preventivas e remediativas não acontecerem, então, a violência doméstica sempre será uma ferida aberta na sociedade. A prefeitura precisa oferecer apoio às vítimas, já que muitas vezes não oferece proteção e prevenção. Centros de referencia a mulher, ONGs apoiadas pela PM, projeto sociais, campanhas, etc. Existe uma infinidade de programas que podem ajudar a vítima. O passo mais difícil para a vítima é denunciar, mas logo em seguida, ela precisa recomeçar. Neste momento ela está vulnerável e precisa de apoio, recursos, da PM, de especialistas, tanto para ela quanto para os filhos. É um trabalho delicado, mas essencial. Se isso não for feito, então, o feminicídio é uma consequência inevitável.

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Ainda sobre o assunto, não ter um programa ou uma delegacia da mulher pode revelar falta de interesse e que as políticas ainda são muito machistas? A única coisa que pode coibir a violência no Brasil e no mundo é a educação. Não existe outra forma mais eficaz. Sabemos disso. Se uma prefeitura não se mobiliza é porque, de fato, não está interessada em investir. Recursos financeiros para isso existem, porque uma campanha  não é tão cara para os cofres públicos. Nos últimos meses, muitas ações têm sido feitas e o assunto tem sido bastante comentados. Digamos que isso seja um empurrão para que algo eficaz seja feito pelos administradores.  Mas muito ainda precisa ser feito. Bom, o machismo, ah, o machismo. Ele é a razão da opressão ao gênero. Ele é razão do meu livro existir. Este comportamento é tão corrosivo, está intrínseco à sociedade, às famílias, às igrejas, ao governo. Em algum momento da vida, todos nós já reproduzimos o machismo, inconscientemente. Então, certamente, este também é um dos motivos. Infelizmente, pelo que percebo, nossos representantes políticos ainda não se libertaram da cultura patriarcal, sexista e machista. A verdade é que muitos encaram os direitos das mulheres como privilégios. Nesse sentido, a violência tem sido empurrada com a barriga para debaixo do tapete. É lamentável, mas é um fato.

Você está em Artur Nogueira há pouco tempo, mas como vê a cidade em relação ao trato com mulheres? Infelizmente, não ando muito pela cidade por causa do trabalho. Dificilmente saio à noite ou sozinha. Quando vou ao centro fazer compras ou comer, sinto que sou invisível. Percebo que alguns homens me assediam, mas eu ignoro e pelos outros que circulam também sou ignorada. A realidade é muito difícil para as mulheres em qualquer lugar. Onde haver homens machistas, sempre vai haver assédio e abuso.


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