04/07/2015

ENTREVISTA: Kal

Músico nogueirense foi para Portugal em 1989 com uma mochila e um violão. Agora volta a Artur Nogueira com duas formações superiores e uma música que virou trilha de filme português

capa 2“A gente vai crescendo com os sonhos” (Kal)

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Isadora Stentzler

Kal sobe às escadas do Portal Nogueirense com o violão nas costas e uma mochila. Capacete nas mãos. Está há dois meses em Artur Nogueira com apresentações em empórios e bares que incluem os sons da Banda Força Jovem, a primeira formada pelo músico há 33 anos. Algo que transita pelo MPB de Caetano Veloso e se encontra no rock de Legião Urbana. Ele está animado para compartilhar a história. Com um sotaque aportuguesado vai do presente ao passado de forma a criar pontes entre as primeiras influências e as últimas.

No dia 7 de junho Kal, de registro Carlos Antônio da Silva, esteve no empório Marcos Capelini. Cantou: “Quando Deus te desenhou, ele tava namorando. Na beira do mar, na beira do mar do amor…” Tirando aplausos e assovios. “Você, é mais do que sei. É mais que pensei. É mais que esperava, baby.” E pediu ovações para Ricardo, o percursionista. “Uma salva de palmas para o Ricardinho. Ele brilhou pra vocês.”

Kal se demonstra muito humilde. Nada mais que um boné, camiseta simples, uma calça e tênis para cantar olhando ao horizonte sentindo as notas se fundirem com a alma. “Toco porque canto”, diz. “Preciso do ritmo para me guiar.” A voz rouca combina com os poemas recitados em música pelo cantor.

Quando saiu de Artur Nogueira para ir a Portugal, em 1989, levava uma mala, um violão e o sonho de quem tem falsetes nas correntes sanguíneas: viver de música e se formar.

Nessa ida deixou em solo paulista fragmentos do menino pobre, de oito irmãos, migrante de Belo Horizonte, que ao chegar aqui foi logo metido no corte de cana – para ajudar a família. Serviço de adulto nas costas do garoto franzino. Tinha lá uns 12 anos e bem queria era ser jogador de futebol. Bater bola, fazer gol. “Mas não para ostentar. Para ser profissional. Hoje os caras jogam bola para ostentar a riqueza e nem fazem tanta coisa no campo. Eu não queria isso”, relembra nobremente. “Aí um ancião disse pra mim: ‘Ah, rapaz, você poderia vir a ser um artista, um cantor, uma coisa qualquer. Porque jogador de futebol não é tão fácil assim. É muito complicado. É um em um milhão’. E eu guardei”.

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Ficava também a bicicleta com a qual entregava gás de casa em casa. Coisa que lembrava o quase atropelamento em um dia de serviço. Ficava a banda Força Jovem – que também foi a banda TPG – Tudo Por Grana – e a banda Cortina de Ferro. Ficavam os sacos de cimento usados para trabalhar na construção civil. Ficava o uniforme da Teka. Ficavam os amigos Sérgio, Ronaldo, Nil, Amarildo, Agnaldo, Mané, Marcelo, Leandro, Cleber, Neném, Junior Batata, Frank, Maicon, Japonês – lembrados nominalmente pela falta que fizeram. Ficavam o fusca e a moto, vendidos para comprar as passagens. Só não ficavam os sonhos. Estes foram amarrados nos pés e os fizeram ir para fora.

O sonho era antigo. Kal nunca sentiu que teria condições de fazer uma faculdade no Brasil. Tinha o desejo de ir para outro país. Conhecer o mundo das revistas e os lugares estudados em Geografia. Pensou na Alemanha, mas julgou que teria problemas com a língua. Então escolheu Portugal. Não havia tantas diferenças, além do sotaque, que os separaria dos portugueses. Além disso já tinha cursado quatro anos de inglês, em Campinas, e gostava do idioma.

A decisão foi tomada alguns anos antes da partida. Tempo para guardar dinheiro e se organizar. Não que ele soubesse em qual local ficaria quando chegasse a solo português, mas serviria para amolar a ideia. Dor mor lhe causou o adeus à banda. Foram sete anos compondo e tocando com os amigos da velha guarda. Em bares da cidade, da região. Sentia que crescia nisso. As músicas, inspiradas na calmaria da água e a dança do ar, o faziam criar poemas de amor até agora por ele lembrados.

A primeira música não foi assim. Às pressas Kal escreveu uns versos para um concurso de bandas em Artur Nogueira. Falava sobre drogas. No estúdio do Portal Nogueirense ele pega o violão e relembra o coro. “Vamos ver se a voz chega lá, porque eram outros tempos… já passaram uns 30 anos, mais ou menos”. E canta:

O sol se põe no horizonte
Longe atrás do monte
Onde jamais estarei

Sem dizer adeus ou mesmo até já
Só porque tem certeza
Que jamais voltará

Para muitos que estão nesta hora
Curtindo suas drogas
E outras coisas mais

Tirando do pão para comprar tais bagulhos
Construindo um futuro
Sua destruição

Precisamos encarar a verdade
Com mais Força Jovem
Menos ilusão

Não podemos deixar que jovens como nós
Se deem, se entreguem
Se joguem à destruição

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A música em Kal foi despontada pelos ares familiares. Pais religiosos e músicos, dona Madalena Cordeiro Mendes, a mãe, cantava, e seu Genário da Silva Mendes, tocava. Desde muito cedo Kal conviveu com essas influências – mais o conselho daquele ancião que o incentivou à arte antes do futebol, e o exemplo se tornou desejo.

Nesse período, apesar no rock e da época ser lembrada pelas drogas e o álcool, Kal diz que a ele no máximo foram alguns goles… e essas também eram lembranças que iam junto na pequena mala.

Preparou a família para a partida, tomou o avião rumo a Lisboa e aos 22 anos seguiu para o continente só visto nos mapas mundi.

Era março de 1989. “Quando cheguei ao aeroporto de Lisboa, na aduaneira, o policial me perguntou: O que é que você veio fazer aqui? Eu falei: trabalhar e estudar. Ele: você tem visto? Eu: Não, não tenho. Ele: Você está com uma sorte muito grande porque se fosse naquele meu companheiro ali, ele te mandaria de volta no próximo voo. Mas vai e faz tua vida.”

Kal saiu do aeroporto desconcertado, aliviado e temeroso pelo não que quase recebeu. Poderia ter perdido a chance naquele momento. Houve sorte e sina. Fora dali, e um pouco perdido, caminhou pelas novas ruelas. Não era Lisboa como imaginava. Pensou ele em encontrar uma cidade antiga, igrejas velhas e ruas mais do que estreitas. Longe disso Lisboa era bem urbanizada e ordeira. E, Kal, sem rumo, só precisava encontrar um local para ficar ali. Para ele não começava ali um passeio, umas férias. Começava uma nova etapa da vida bem longe de casa.

Achou um quarto em um albergue, que dividiria com 12 pessoas desconhecidas – viajantes como ele e futuros novos amigos. No outro dia, de umas voltas pelas redondezas, achou um emprego, o primeiro em Portugal. “Eu iria lavar pratos em um restaurante. Mas fiquei lá por pouco tempo. Logo achei emprego em outro restaurante.” O serviço era o mesmo, mas nem de longe era isso o que Kal queria.

A lonjura de casa lhe doía e em um momento de solidão compôs estes versos, a música do Palhaço:

Cantar, foi e sempre será assim
Mesmo que o mundo só traga para mim
Motivos para chorar
Eu canto mesmo assim

Cantar, foi e sempre será assim
Tudo demais belo que o mundo tem pra dar
Só faz de mim tão triste
Feito rio chegando ao mar

Tal qual palhaço triste
Menino que não ri
Mar que nunca leva
Essa dor que não tem fim

Borboleta que espera
Primavera que não vem
E a chuva que não traz
Mais notícias de ninguém

Mas mesmo essa dor fora passageira. Para não cair na rotina, Kal se mudou de Lisboa. E entre aqui e ali se mudou outras pás de vezes. Nos empregos que arrumava conseguia juntar o dinheiro suficiente para viver. Imigrante, sem autorização, teve uma chance além mar como pedreiro, garçom. Mas empregos sensatos, duros, rotineiros, não serviam para mover aquele que deixou o lar para viver da música. Por isso suas mudanças sempre tinham um quê de som. Tocou em bares, tocou nas ruas. Tocou música brasileira, americana e portuguesa. Tocou música própria e compôs a beira mar.

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Sem religião, mas crente na vida e na natureza, compunha pelo que aprendia da água e do ar. “Não é a religião que faz você alguém melhor ou pior. É a deidade.” Compartilhou experiências com budistas e conheceu do cuidado com o corpo. Vindo a vivenciar, uma vez ao ano, a dieta crudista: em que se alimenta durante um mês apenas com produtos crus.

Mas Kal, sobretudo, foi e é um aventureiro. Aprendeu a aproveitar todas as oportunidades. Tanto que nos 26 anos que ficou em Portugal cursou Informática, formou-se em Educação Física, fez curso de Treinador de Futebol, casou-se e hoje é professor, músico e viajante. De quando em quando volta para o Brasil ver a família, que também já foi para lá conhecer a esposa e a casa do filho. A notícia boa dessa visita é que a música Palhaço, a composta sob a solidão, vai ser trilha de filme português. E para o músico que saiu de Artur Nogueira com mais bagagens de sonhos do que de roupas, a arriscada deu certo. “A gente vai crescendo com os sonhos. Hoje consigo viver da música, ou de Educação Física, ou de treinador esportivo, ou de professor de inglês.”


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