19/02/2011

De Cirineu para Cissa

Conheça a história de um dos moradores mais polêmicos que Artur Nogueira já teve

Alex Bússulo

Quem vai ao Carnaval de Artur Nogueira e encontra a Cissa em cima de carros alegóricos, esbanjando carisma e ousadia, não imagina que esta transexual já foi professora para uma turma do primeiro ano em uma escola aqui da cidade. Isso sem contar os estudos em enfermagem. “Não fui enfermeira porque tinha dó”, afirma Cirineu Martins, a Cissa.

Se sua vida fosse resumida em uma única palavra, talvez essa fosse coragem. Amada por muitos, odiada por alguns, Cissa construiu sua vida na cidade “Berço da Amizade”, onde sempre participou dos Carnavais.

Nascida em 31 de julho de 1975, hoje com 35 anos de idade, assumiu sua homossexualidade aos 15.

Na entrevista desta semana conversamos com a transexual. A cabeleireira atendeu nossa equipe em seu salão, no Jardim Blumenau, em Artur Nogueira. Um lugar tranquilo de paredes verdes e alguns espelhos. Durante a conversa, várias vezes fomos interrompidos por pessoas que passavam pela rua e acenavam para a entrevistada. Em um bate-papo de mais de uma hora, Cissa nos contou sobre sua opção sexual, sobre os preconceitos, sobre família e revelou segredos, nunca antes dito ao público.

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CISSA OU CIRINEU? Cissa, sem dúvidas! Odeio Cirineu. Ninguém mais me chama deste nome. Alguns me chamam de Ci ou Neu. Cirineu é um nome muito másculo, não me vejo como Cirineu com esse peitão [risos]. Já faz seis anos que estou tentando mudar meu nome, mas é um processo complicado.

QUANDO FOI QUE VOCÊ PERCEBEU QUE NÃO ERA HOMEM? Desde quando nasci. Sempre me achei diferente. Nunca gostei de jogar bola, brincadeiras de meninos, preferia coisas de meninas. É algo que nasceu comigo. Eu nunca fiz a barba, nunca tive um pêlo no rosto e nunca tomei nenhum tipo de hormônio. A porcentagem de hormônios em meu corpo é de 90% feminino.

COM QUANTOS ANOS VOCÊ ASSUMIU? Foi aos quinze anos. Eu reuni toda a família na sala de casa, e soltei a bomba. Todos ficaram chateados. No começo foi difícil. Minha família sempre foi conservadora. Sabe aquele povo que mora no sítio e que pede bença para a mãe e para o pai? Minha família é assim. Meu pai sempre foi muito rigoroso na educação dos filhos. Quando tinha visita em casa e eu passava no meio da conversa, meu pai não fazia nada, mas quando a pessoa ia embora a gente levava uma surra. Meu pai chegou a vender uma vaca para pagar um tratamento no doutor Décio pra mim, nunca me esqueço disso. Lembro que me diziam que para eu ser homem eu deveria tomar hormônio masculino. Sem contar o tratamento psicológico na Unicamp, durante seis anos.

ACONTECEU ALGUMA COISA NESSA IDADE, QUE REFORÇO SUA OPÇÃO SEXUAL? Não, eu vim para Artur Nogueira com 14 anos, demorou um ano para eu decidir. Minha primeira vez foi aqui nesta cidade. Confesso que houve até uma vez que eu tentei ficar com uma menina, mas não consegui. Eu a beijei, pedi licença e fui vomitar em um canto. Me deu um nojo.

E DEPOIS? Com 20 anos eu me transformei em transexual. Fiz todas as cirurgias que você pensar.

COMO É A RELAÇÃO COM A SUA FAMÍLIA HOJE? ELES ACEITARAM? Sim. Minha família é tudo o que eu tenho de mais valioso. Não sei o que faria sem eles. Hoje pra todo mundo eu sou a Cissa. Minha família tem orgulho de mim e eu dela.

DO QUE VOCÊ SE ARREPENDE? Nossa, já fiz de tudo nessa vida… [pensativa] Uma vez recebi uma proposta muito tentadora para fazer um filme pornô, mas não aceitei. Principalmente por causa do meu pai. Arrependo-me de não ter feito.

FARIA HOJE? Com certeza.

HOJE VOCÊ TRABALHA COMO CABELEIREIRA, COMO É A SUA CLIENTELA? É maravilhosa. Minha agenda está sempre cheia. Sou muito profissional no que eu faço, tenho muito respeito por meus clientes. Aqui dentro eu sou a Cissa cabeleireira, lá fora as pessoas podem me chamar do que quiserem que eu não ligo. Mas aqui as coisas são certinhas.

ALGUÉM JÁ “CONFUNDIU AS COISAS” AQUI DENTRO? Uma vez apareceu um sujeito aqui às nove horas da noite querendo que eu cortasse o cabelo dele. Ele se sentou na cadeira e eu fui pegar a tesoura do outro lado, quando me virei, ele havia abaixado as calças. Eu fiquei indignada. Larguei ele aqui e fui pra casa do meu pai. Se tem gente que pensa que vai vir aqui e fazer alguma coisa comigo, está completamente enganado. E se abusar eu quebro o sujeito no meio. Eu respeito e quero ser respeitada.

VOCÊ JÁ SAIU COM ALGUÉM QUE NÃO SABIA QUE VOCÊ ERA TRANSEXUAL? Sim, e com muitos [risos], sai várias vezes com um empresário famosíssimo aqui da cidade e ele não percebeu. Aí tive que contar.

E O QUE ACONTECEU? Saímos mais vezes ainda [risos].

COMO VOCÊ VÊ A QUESTÃO DO HOMOSSEXUALISMO EM ARTUR NOGUEIRA? Assim como em todo lugar, vejo duas formas, aqueles que nasceram com isso e aqueles que têm sem-vergonhice mesmo. Eu fui o primeiro transexual da cidade, e acho que sou o único. Aqui tem muito viadinho que fica em porta de forró fazendo ruaça, até roubando, saindo com homem por cinco reais. Não dá. Isso acaba desvalorizando a gente. Eu não sou viado. Sou uma transexual.

QUAL A DIFERENÇA? O viado é aquele tipo de pessoa que é gay, mas tem o físico de homem, se veste como homem, tem barba, etc. O transexual se veste como mulher, anda como mulher, tem o corpo de uma mulher, resumindo, é uma mulher.

E COMO É SER ISSO HOJE? Hoje para o cara ser gay é complicado. Ou ele é maquiador, ou é transformista, ou é cabeleireiro, ou vai para a prostituição. Não existe outra opção. Ninguém dá emprego pra viado, muito menos para travesti.

VOCÊ JÁ SE PROSTITUIU? Sim. Nunca escondi isso, minha família sabia. Mas foi por uma questão de necessidade. Arrumar emprego não foi fácil na minha situação. Hoje as coisas são bem diferentes, tenho curso de pedagogia, enfermagem e estou concluindo o curso de radiologia. Tentei ser enfermeira, mas não consegui. Depois fui lecionar para uma primeira série no Caic, mas percebi que não levava jeito. Hoje ganho bem com meu salão de beleza e estou bem assim.

TEM ALGO QUE VOCÊ NUNCA VAI ESQUECER? Uma vez, fui com um namoradinho em um restaurante aqui da cidade, comi uma pizza e na hora que estava indo embora, um casal que ia sentar no lugar onde eu estava sentada, pediu álcool para o garçom para desinfetar a cadeira. Eu nunca me esqueço disso. Me trataram pior que um bicho contagioso. As pessoas falam muito de mim. Já me mataram umas trezentas vezes aqui na cidade.

COMO ASSIM? As pessoas inventam um monte de mentira sobre mim. Já falaram que eu morri de Aids, que eu fui baleada, enforcada, que eu morri com uma injeção no pronto-socorro. Nossa, já até perdi as contas…

VOCÊ AINDA SOFRE PRECONCEITO? Muito pouco. Os ignorantes que não me respeitam normalmente são molecada de quinze, vinte anos. As pessoas adultas, os senhores, os comerciantes aqui de Artur Nogueira me respeitam e muito.

JÁ PENSOU EM ENTRAR PARA A POLÍTICA? Já me convidaram muitas vezes, mas não nasci para isso. Não levo jeito pra coisa. Quando é ano político, muitos amigos que se candidatam pedem para colocar cartazes aqui no meu salão e eu não deixo, não gosto de misturar as coisas. Entrar na política pra mim é algo impossível, não, não, não. De jeito nenhum.

VOCÊ ACREDITA EM DEUS? Muito. Deus está muito presente em minha vida. Eu sou católica. Não costumo muito ir à missa, mas faço minhas orações em casa. Alguns falam que quando eu morrer eu vou direto para o inferno. Não acredito nisso. Sou uma pessoa boa, nunca fiz nada de mal para ninguém. O que eu posso ajudar eu sempre ajudo. Quem me conhece sabe disso. Aqueles que me criticam, não me conhecem.

VOCÊ É FELIZ? Muito. Eu não estava feliz quando estava comprometida com meu ex. Me sentia sufocada. Hoje me sinto um pássaro solto [risos]. Tenho meus problemas, assim como todo mundo tem. Às vezes entro no meu quarto, me sinto sozinha, choro. A vida é assim. Mesmo assim sou feliz, porque tenho pessoas maravilhosas em minha vida.

QUANTOS RELACIONAMENTOS SÉRIOS VOCÊ JÁ TEVE? Foram três. O primeiro durou seis anos, o segundo, três anos e este último durou sete anos. Não deram certos porque as cabeças não batiam. Meu último marido não queira sair comigo, só queria sair com os amigos para os bares, aí é complicado né.

QUAL É O SEU MEDO? Tenho medo de perder minha família. Amo muito meus pais. Minha melhor amiga é a minha mãe. No começo, quando saia com algum rapaz, ela era a primeira a ficar sabendo. Sempre tive um laço muito forte com ela. Estou em Artur Nogueira por causa dos meus pais. Hoje, meu salão fica do lado da casa deles para que eu possa sempre vê-los. Se não fossem eles, eu já teria sumido daqui a muito tempo.

É VERDADE QUE VOCÊ FOI SELECIONADA PARA PARTICIPAR DE UM PROGRAMA DO SBT? Olha, isso é em primeira mão hein! Participei de uma apresentação do programa Gente que Brilha, e fui a primeira a ser selecionada, concorrendo com mais de mil candidatas. Recebi uma ligação na semana passada me convidando para gravar a próxima etapa, que será uma apresentação de transformista. Além disso, vou participar do concurso Miss Gay, que acontecerá em São Paulo.

E O CARNAVAL DE ARTUR NOGUEIRA? É a minha paixão! Não tem quem me segura, eu vou todos os anos, desde a época da Rubro Negra. As pessoas me criticam, e podem criticar a vontade. Falam que eu só quero aparecer, mas eu não estou nem aí. Todo ano invisto em fantasias e sempre me destaco. A primeira pessoa que saiu com os peitos de fora aqui em Artur, fui eu.

COMO SERÁ SUA FANTASIA DESTE ANO? Olha, era segredo, mas vou te contar. Vou sair de Cleópatra. Mas a cobra vai ficar no carro alegórico. Quem for ver, não se arrependerá [risos].


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