Cruzes localizadas na zona rural de Artur Nogueira revelam costumes religiosos
Fiéis frequentam os locais para rezar e fazer homenagens a dois personagens que compõe parte da história do município.
Por Isadora Stentzler
Os termômetros beiravam os 35°C quando o carro estacionou na rua de areia que levava ao interior dos canaviais da Usina Ester, no bairro Mato Dentro, em Artur Nogueira. Seu Juca Mandu, de bermuda e camiseta desabotoada até o meio do peito, saiu lentamente do veículo. Apoiou os pés no chão, passou a mão nos ralos cabelos brancos, levantou-se e caminhou a passos compassados até a cruz de madeira fixada junto à rochas no pé de uma grande árvore. Com reverência, prestou minutos de solene oração. “É pela alma daquele menino que morreu aqui. Ele não tinha pecado, né? Nós é que somos pecadores. Um menino daqueles está com Deus agora. Um anjo!” Então colocou a mão no peito e relembrou a história.
Há cerca de 100 anos, um carro de boi fazia o mesmo trajeto na estrada de areia levando um menino e seu pai. O cenário não abrigava as canas de açúcar que agora cobrem toda a área. Provavelmente, havia apenas mata com algumas clareiras. E ali, um acidente tiraria a vida do garoto. Despreocupado e frouxo em sua viagem, o menino não ligou para a instabilidade do veículo que ultrapassava os buracos do caminho. Em um desses trechos desequilibrou-se e caiu do carro de boi. Fosse só a queda, a criança teria voltado com o pai. Mas não. O veículo passou por cima dele, matando-o naquela mesma estrada de areia que hoje faz divisa com os canaviais da Usina Ester.
“E a cruz foi deixada como lembrança”, detalha Mandu. “É porque se acredita que a alma da pessoa depois que morre fica vagando. Com a cruz ali, ela recebe um descanso.”
O local onde está a cruz parece um refúgio. Acolhida pela sombra da grande árvore, ela foi fixada em fendas de pedras que a apoiam. Também não está abandonada. Santos, rosários e flores artificiais enfeitam a cruz e mostram que ali se trata de um ponto de fé. Mandu, que tem 79 anos e morou 21 anos na região, dá exemplos: “Quando faz muito calor, sei de gente que vem e joga uma bacia de água na cruz. É pra Deus mandar chuva. Uma crença do povo da roça”.
A história já é contada há anos, sempre sem saber da idade e do paradeiro do garoto. O único nome citado é Caroldino, homem que supostamente guiava o carro de boi.
Mas Mandu também diz que no mesmo local onde está a cruz do menino outras coisas aconteceram. “Um sobrinho meu namorava uma moça que morava por aqui. E um dia, indo embora da casa dela, a porteira se abriu. Abriu para ele. Abriu e fechou. E aconteceu aqui, bem perto da cruz do menino.”
Porém a cruz do menino não é a única dos terrenos da Usina Ester. A 700 metros dali, outra, esta de ferro.
A cruz da escrava
“Isso aconteceu há 200 anos com a escrava da minha bisavó”, narra Mandu mais uma história.
Era noite, véspera de festa de São João. O carro de boi saía da casa de dona Ana Alves, bisavó de Mandu, carregado com alimentos para a comemoração. A festa seria ali perto, na casa de uma das filhas de dona Ana. Com o carro cheio, Ana e a escrava, lembrada como Inhanja, seguiram para uma viagem que seria curta.
Subiram pela estrada de areia 500 metros. Ali, com árvores vigiando o carro de boi que passava, Inhanja enfartou. Nunca mais comemorou com Ana as festas de São João.
“Quem me contou foi minha avó. Mas nem minha avó chegou a conhecer a escrava. Ela só sabia da história. É que depois foi deixado uma cruz de madeira na beira da estrada, bem onde ela morreu. Era madeira boa, entendeu? Mas a Usina comprou aquele lugar, e como tava só o toco da cruz, a Usina colocou uma cruz de ferro. Isso foi lá pela década de 50.”
A cruz está no local onde Inhanja morreu. É de ferro e o tempo a deixou enferrujada. Ao vê-la, Mandu copiou os movimentos feitos em frente à cruz do menino. Orou ali. Tocou no peito. Fechou os olhos. Tocou na cruz. Para ele, um local a ser respeitado. “Toda vez que passo aqui eu rezo pela alma dela”, e repete a frase com solenidade e respeito no olhar.
É que as cruzes fazem parte de uma história ainda não registrada, de um povo nogueirense que viveu há muito tempo aqui.
Comentários
Não nos responsabilizamos pelos comentários feitos por nossos visitantes, sendo certo que as opiniões aqui prestadas não representam a opinião do Grupo Bússulo Comunicação Ltda.