22/02/2015

Andarilho que foi do Recife ao Paraguai a pé compartilha sonhos ao passar por Artur Nogueira

Ele é desenhista, também toca violão. Sonha em ser músico e quer mudar o mundo com arte. Conheça Florisvaldo

Por Isadora Stentzler

Florisvaldo Santos é um louco de toda espécie. Tem 49 anos e vive na casa engraçada da cantiga, sem teto, sem nada. É homem da estrada. Nordestino simples, viajante. Que só não tem diploma porque a vida não aprendeu a emitir certificados. Não carrega bagagens extras. Só as espirituais. E papel. Mais papel que roupa. Porque Florisvaldo também é artista. Doutor em existência humana, sabe monologar sobre as reais necessidades do homem. Na música e no desenho. Veio ao Portal Nogueirense trazendo arte. Passou pela frente. Caminho de acaso. E foi chamado para entrar. Guitarra e um notebook nas costas. Três pastas nas mãos. Duas caixas em um carrinho de puxar. E histórias. Muitas histórias. Limpou os pés nos tapetes da redação. Mais de três vezes. No estúdio também despiu-se dos calçados. Para nada empoeirar. Uma preparação dos contos que tinha para anunciar.

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Vá lá que Florisvaldo não sabe bem narrar os fatos. Começa a contar a vida a partir dos 12 anos, mas termina falando dos sete. Pula de uma história para outra só para dizer as impressões que o fizeram ser quem é: um modesto sonhador. Não nega ele também: quer mudar o mundo. Mas com arte. Porque já conheceu gente demais e sabe que entende o que o outro precisa.

A vida do viajante começou em Recife. Num hospital público, parido de uma mãe esquizofrênica. Não pode, depois da primeira quinzena, continuar com a progenitora. Precisou ir para a casa da paraibana Maria da Penha. Mais uma Maria da favela daquelas terras beira mar. A mãe de criação de Florisvaldo o acompanhou até completar 12 anos. Deu a ele o que podia. O que tinha. Mas não sobreviveu para ver o garoto assoprar a 13ª vela. Morreu. Nem Florisvaldo sabe de que. E foi ele para outra favela. A da mãe biológica. “Com 15 dias de nascido quando minha mãe teve uma crise, segundo a história que contam, né, aí eu fui morar com ela [Maria da Penha]. Então fiquei lá até os 12 anos. Aí ela morreu e eu fiquei na rua. Porque minha mãe era nervosa. Minha mãe verdadeira [dona Tereza Ferreira dos Santos]. Mas ela era muito nervosa. Em casa não ficava muito tempo. O mais difícil era a falta de dinheiro, né, e o relacionamento em casa era meio bravo. Mas eu tinha um sonho de artista. Com nove anos eu pensava em ser compositor. E com sete, mais ou menos, eu cantei na escola, no Centro Paroquial de Campo Grande”, lembra-se bem. Por isso aos 12 não tagarelou demais e saiu de casa. Também não era dono do conhecimento das ruas. Só se largou com a bagagem que naquele tempo era pequena e começou a intercalar a vida entre alamedas e casa. Dois meses na rua, alguns dias em casa. Tempo para conhecer álcool, cigarro, maconha e cocaína.

“Tem aquela música do Chico César, né. Acho que ela fala de mim:

Quando não tinha nada eu quis
Quando tudo era ausência esperei
Quando tive frio tremi
Quando tive coragem liguei.”

E repete em tom barítono: “Quando não tinha nada eu quis.” E reflete: “É a minha vida.”

Um nada encontrado porta a fora de casa. Um aprendizado também. Já aos 18 anos, como conta, ganhou um violão. “Mas eu não sabia afinar. Eu ganhei em Recife. Ganhei de um camarada que eu trabalhei pra ele. Trabalhei num negócio de telefonia. Passei um mês com ele. Mas eu tinha vontade de trabalhar de arte. Queria ser artista e tal.” O violão foi bem-vindo ao maluco beleza que já tinha dado pintas de artista. Veia despontada dos sete para os oito anos também na escola, agora em um concurso de desenho. Mas Florisvaldo não desenhava. Achava ele. Também pouco ia à aula. Mas caneta a papel, a prova real foi tirada e os traços de Florisvaldo, escolhido. Venceu. Nem ele acreditou na premiação.

Anos depois, somou o prêmio do desenho com a participação no show de talentos. Lembrou que tinha um quê artístico a aflorar e escolheu a praia de Boa Viagem para isso. Conheceu gente interessante. Hippies praieiros. Desapegados. Viventes de barracas. Ciganos de alma. “Naquele tempo me chamavam de poeta. Porque eu ficava poetizando. Mas eu não tinha estudo não, eram só umas poesias meio fracas.” Foi deste grupo que Florisvado tirou sua musa. Porque se todo artista tem a sua, Florisvaldo também precisava de uma. “Inclusive eu desconfio que aquela música do Alceu Valença que ele fala da madame Belle de Jour fala dela, de Elaine. Como é mesmo:

Eu lembro da moça bonita
Da praia de Boa Viagem
E a moça no meio da tarde
De um domingo azul
Azul era Belle de Jour
Era a bela da tarde
Seus olhos azuis como a tarde
Na tarde de um domingo azul
La Belle de Jour!

E tipo assim, eu acho que ele compôs essa música pra ela. Porque no tempo que eu a conheci, um primo dele, do Alceu Valença, tinha uma banda, a Banda Vermelha. Até me apresentei pra ele. Mas eu era meio caboclo. Sem muito estudo. E ele deu em cima dela. E ela era linda, linda, linda. Como as bailarinas do Fantástico, quando tinha. Ela tinha as pernonas grosas. As batatas da perna grossa. Ela praticava capoeira. Tocava um violão tremendo e cantava. Então era muito linda e chamava muito atenção.”

Uma moça loira e branquinha. Um amor platônico, a princípio. Correspondido apenas à medida que o destino deixou. Amor de verão. Paixão que arde e se apaga. Porque logo se viram longe os dois amados. É que pássaros não se engaiolam nem para acalentar o coração.

E ali na praia de Boa Viagem foi que Florisvaldo completou seis anos de rua. Aprendeu com as pedras e areias o que é viver e lutar. Não é que não queria trabalhar, é que não queria fazer algo que não fosse por paixão. Mas aí veio a igreja. Porque precisava ele também de um toque de fé cristã. Foi chamado, assim da rua, para ser missionário. E diz que viveu bem. Saiu do Recife e foi direto a Manaus. A primeira grande viagem. Foram cinco anos longe das drogas. Perto de gente do bem. Ensinando crianças a tocar violão. Nem ele sabia direito os tons, mas de ouvido e de talento inseriu muitas no caminho da arte.

Arte que acredita ele ter poder para mudar o mundo. Porque arte toca as pessoas. Expressa o que vem de dentro. Emociona. Faz refletir. Particularmente Florisvaldo gosta de Raul Seixas, Legião Urbana, Engenheiros do Havaí, Zé Ramalho. Mas não são eles que o inspiram. São apenas admirados dentro do que fazem. “Eu tenho que ter meu estilo.”

Florisvaldo, lá pelos 30 anos, chegou a estudar música também. Foi quando resolveu voltar ao Recife. Já tinha ido ao Paraguai. Andando. Dois anos de caminhada. “Levei tiro e vi onça.” Porém voltou. E no Recife achou em uma escola a oportunidade de aprender e se aperfeiçoar no único instrumento que acredita mudar algo. Passou três anos e meio nas cadeiras. Tempo de abrolhos e brotoejas. É que ser da rua e estudar tem também suas dificuldades. Vira e mexe Florisvaldo virava chacota. Afinal, era o único aluno que dormia pelas escadas da escola. Bem chamando os degraus de casa.

Depois disso preferiu não ficar mais os cinco meses que faltavam. Guardava medo em si. Conspiração até com a diretoria. E se largou de novo no mundo.

Quantos estados você já visitou?
É mais fácil falar dos que eu não visitei. Olha, faltam sete. Amapá, Distrito Federal, Acre, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Tocantins. Mas falta um, né? Se eu lembrar depois te falo.

E nessa sua caminhada você viu mais maldade ou mais bondade no mundo?
Rapaz, pra falar a verdade é muito relativo. Mas eu vi, digamos assim, mais maldade. Mais maldade porque não me ajudaram. E não me ajudaram como eu to agora, inteligente. Porque é muito fácil ajudar eu quando sou ingênuo, entendeu? Mas eu só vou saber que tipo de pessoa foi você que me ajudou quando eu me tornar inteligente. Hoje eu sei, entende? Se a pessoa me dá alguma coisa eu falo: ‘Então olha a minha exposição pelo menos’.

Como você consegue dinheiro?
Fazendo desenho e… deixa eu ver mais… também pedi muito pra assistente social. Mas agora não to querendo mais pedir. Vendo meu desenho. O mínimo é R$ 3. Às vezes até R$ 1. Mas geralmente é de R$ 3. De R$ 3 em diante.

E abcd

Da suficiente para viver?
Se dá o suficiente para eu viver? No momento não. Porque falta eu fazer meu painel, né. Tem que ser uma coisa organizada. Eu preciso ter cartão de desenhista. ‘Você é desenhista? Ta aqui meu cartão.’ Apesar de que eu não quero ser desenhista, entende? Eu vou desenhando, eu vou desenhando… mas eu quero ser músico.

Você consegue ganhar dinheiro com a música?
Já ganhei. Lá em Manaus eu dei aula de violão.

Mas e em um show, em barzinho?
Nunca toquei em barzinho.

Mesmo assim prefere morar nas ruas?
Não. Eu prefiro ter a minha casa própria. Mas não quero morar na casa de ninguém. Prefiro ter meu cantinho.

Então se arrepende de um dia ter deixado sua casa?
Não. De forma alguma. Acho que isso aí foi destino. Até porque às vezes eu sonho e acontece. Minha vida é espiritual. Eu tinha que passar por essa história para ajudar outras pessoas que moram na rua. Um dia eu vou ficar rico e vou atentar para essas pessoas.

O que vai fazer?
Eu vou ter que dividir isso, né, cara. Se fosse um artista famoso eu acredito que a gente tem que entrar em uma sociedade. Nas rádios, né. As vezes até assalariado. Mas com o meu dinheiro eu teria que ajudar.

É como se fosse um dever?
É, é. Mas uma ajuda inteligente, né. Alguém que realmente precise ou uma entidade.

E o que você acha que falta no mundo para ele ser melhor?
Sendo um pouco filosófico: a consciência, né. Um problema humano. Por exemplo, eu sou mal, não é porque eu quero ser mal, digamos assim. É porque eu não tenho uma consciência. Não sou tão inteligente. Não aprendi a usar boa parte do meu cérebro. Então os caras veem um ato mal e já querem te matar. Mas eles não estão vendo que eles também são imperfeitos. E que o camarada, aquele, ele não tem consciência que está errado. Mas claro, se eu sou Governo eu tenho que controlar. É por isso que eu penso um dia em ser presidente.

Quando você teve que ser mal?
Tipo assim, eu preciso ser mal quando alguém vem me bater, pra me defender. E eu também posso ser mal sem saber que estou sendo mal. Por exemplo quando eu cheguei numa padaria para roubar um pão porque estava com fome, eu fui mal para aquele cara ali.

Suas músicas falam disso?
Falam de amor e de paz. Falam de coisas pacíficas. Uma preocupação com o mundo, transformar o mundo, questão de consciência, né. Fala de menores abandonados. Fala de um mundo melhor. Coisas assim, desse tipo. Me inspiro na minha vida.

Florisvado não tinha nenhuma letra de música consigo para mostrar. Apenas desenhos. Charges. Traços que ele descobriu saber fazer. Um dia depois da conversa, no feriado de  Carnaval, voltou à redação. Agora, munido de um papel grifado em letras grandes e rimas simples. Um poema de Florisvaldo:

Florisvaldo-poema

Florisvaldo já não deve estar por Artur Nogueira. Se estiver, está de saída. Mas deixou o e-mail. “Vai que alguém queira me promover como artista, né?”
Contato: poeta1304@gmail.com


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